quinta-feira, dezembro 31

Os PIIGS da fringe

O NYTimes de ontem traz um artigo sombrio sobre o que podem esperar alguns "países fracos" da Europa.

At that point, the laggards on the union’s fringe — Portugal, Ireland, Italy, Greece and Spain (the so-called Piigs) — will face even tougher choices to cope with what looks like several more years of stagnant economies, high unemployment and gaping budget deficits.

...on the periphery, the hangover from more than five years of a credit-infused boom shows little sign of diminishing.

Ireland, the first economy to stumble, has taken the most severe fiscal action, cutting public wages sharply. A new Greek government, punished by the rough treatment of bond investors no longer willing to countenance soft promises of reform, is just now promising steep spending cuts. But it is not clear whether the political system in Greece will accept them.

Meanwhile, Spain, to the frustration of many major lenders, seems to be putting off difficult fiscal questions in the hope that its economy will soon recover.

Critics of the euro zone contend that weak governments in the peripheral economies, facing high unemployment and restive voters, will not have the stomach to hold down wages, pensions and public expenditures.

“Are these people serious about reform, or are they just telling people what they want to hear?” asked Edward Hugh, a British-trained macroeconomist who lives in Barcelona and has been critical of Spain’s unwillingness to take difficult economic decisions.


Felizmente que em matéria de reformas e decisões difíceis, podemos estar descansados porque cá em Tugal já se tratou disso tudo. Uf! Espanha que se cuide.

terça-feira, dezembro 29

Professores e ministérios

A nova ministra das normas para as escolas e das carreiras dos professores encontrou-se ontem com os sindicatos deles. Continua a discussão da avaliação e do estatuto da carreira. A impressão com que se fica é que se vão repetir os erros da política do ministério anterior. Sejamos claros: a tarefa de M. Lurdes Rodrigues, que esta ministra "simpática" tem a incumbência de continuar, é a de reduzir a despesa incomportável com os docentes em tempo que, para mais, é de crise. Trata-se então de embrulhar o pacote de medidas numa capa que o possa justificar perante aqueles que votam. A ministra anterior avançou com a divisão da carreira e o processo de avaliação. Ambas são medidas não só razoáveis como necessárias. A maneira como ambas foram postas em prática foi desastrosa. Mostrou (tal como outras medidas - ocorre-me o plano para a Matemática) que M. L. Rodrigues nunca percebeu por onde passa a linha divisória do que há de mau e de bom nas escolas e no sistema de ensino.

Agora o governo abre mão da divisão da carreira, ao mesmo tempo que tenta entupir a progressão nos escalões. Medidas erradíssimas. Ao não admitir duas categorias de professores aceita-se que todos se equivalem potencialmente, como se nas escolas não houvesse necessidade de exercer tarefas com carácter de liderança ou supervisão, que deveriam estar a cargo dos professores mais competentes e experientes. Maior salário e maior responsabilidade seria uma combinação fácil de explicar a todos. A vida seria mais fácil nas escolas se determinado trabalho fosse concentrado nas mãos dos mais responsabilizados para o fazer, em vez de se pôr todos os professores numa roda viva de reuniões e grelhas a preencher. Por outro lado, fazendo depender as progressões de avaliações bianuais, já se antevê um mecanismo pesado e sufocante que vai continuar a ser contestado e a prejudicar, no terreno, o ensino - a única coisa de que ne nunca se fala, certamente, nestas reuniões entre ministras e sindicatos.

segunda-feira, dezembro 28

World crumbling apart



Com o mundo a desmoronar-se à nossa volta, logo escolhemos este momento para nos apaixonarmos, diz Ilse a Rick em Casablanca. O tema do desmoronamento do mundo à volta das pessoas resulta óptimo na boca de personagens do cinema, sobretudo a preto e branco e com vozearia da Gestapo em fundo, como no caso daquela cena. Também pode ser usado com sucesso em textos de badanas: ...retrato de um tempo cruel e de uma sociedade em rotura, onde as personagens não encontram escape do mundo que parece desmoronar-se à sua volta...

Tudo isto tem a sua estética e o seu lugar. Mas o desmoronamento está francamente a mais nas mensagens políticas de Natal no Portugal de 2009:

... em que se celebra esse núcleo essencial na estrutura da nossa sociedade que é a família. Nunca será demais realçar a sua importância na coesão social, necessária ao progresso social que todos desejamos. E é nas épocas em que por vezes julgamos que tudo se desmorona à nossa volta que ganham especial importância os laços de solidariedade, de afectos e de apoio que podemos encontrar na família.

A época podia ser melhor, mas alto lá. Não há bárbaros a caminho das cidades nem cheira a guerra civil. Manuela tem de ser mais crítica com o teor literário das suas mensagens.

Quanto ao resto, está menos mal.

As leituras mais imediatistas dirão que o desmoronamento é uma referência ao fim do mundo, trazido por uns novos casamentos que por aí se anunciam. Mas, embora o texto seja algo críptico, estão lá todas as razões básicas para, pelo contrário, os apoiar. Sim, se estruturação e afecto são tão essenciais na nossa vida, só um coração de pedra poderia querer negá-los a uma parte, mesmo que minoritária, dos cidadãos. E se há quem não queira passar por coração empedernido são as personagens da política. O sentido só pode ser então: tenham calma, que dos escombros da velha família emergirá uma outra, fresquíssima vicejante e universal.

Domingo em Teerão



Ontem gritou-se nas ruas de Teerão "Este é o mês do sangue, Khamenei será derrubado."

sábado, dezembro 26

Utopias fixes


Não sei como ninguém se lembrou disto para tema musical da cimeira de Copenhaga. O clima regulado por decreto. (Musical de Alan Jay Lerner e Frederic Loewe, versão em filme de 1967, Richard Harris e Vanessa Redgrave).

quinta-feira, dezembro 24

quarta-feira, dezembro 23

Estilhaços de minaretes

Os jornais franceses de hoje relatam o episódio que terá ocorrido ontem na reunião dos deputados da maioria, onde se discutiria a proibição do "véu integral". O antigo ministro da justiça Pascal Clément terá dito

no dia em que houver tantos minaretes como catedrais em França, já não será a França

A frase provocou a indignação e a saída da secretária de estado Nora Berra. Clément já tem a folha feita na wikipédia, que não brinca em serviço ("controverse").
Até aqui tudo normal: as atitudes dos europeus face ao Islão, com certeza não por acaso, dão sinal de uma divisão que não é a da brecha partidária tradicional. O que encontro de curioso no relato é o comentário de Nora. Fica em francês que é mais bonito, com sublinhado meu.

Qu’un ancien garde des Sceaux tienne ces propos anti-laïcs dans une enceinte symbole de la République comme l’Assemblée nationale, c’est insupportable ! C’est ça la démocratie ?

A apreciação contém uma contradição insanável. É-se anti-laico por lamentar que as catedrais sejam ultrapassadas em número pelas mesquitas, mas não se é anti-laico por deixar andar até que as mesquitas ultrapassem em número as catedrais.

Coerência

Já chegou há uma semana ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, pela mão de Hafid Ouardiri, uma acção contra o resultado do referendo que determinou na Suiça a proibição da construção de minaretes.

Hafid Ouardiri é um apreciador dos mecanismos legais europeus. Já os usou em 1993 e em 2005 para conseguir a proibição da leitura pública de uma peça de Voltaire.

domingo, dezembro 13

Objectivos da política educativa



Instantes depois de uma reunião estratégica no ministério da educação...
Em www.e-faro.info.

sábado, dezembro 12

Badanas

Sempre me fascinou a literatura de badanas. Por vezes os editores transcreviam, na contra-capa ou nas orelhas dos livros, bocados de textos que iam buscar à crítica literária. Podia ser assim:

...explorando um cosmos inabitado, esta é talvez a sua novela mais ambiciosa... grande entretenimento... Tenho inveja de todos os que ainda não começaram a ler "...", porque os espera o prazer que eu já tive...

Actualmente a tendência vai mais no sentido de fabricar pequenos textos anónimos que constituem a apresentação da obra pelo editor. Possivelmente os profissionais desta mini-literatura frequentaram cursos de escrita criativa. Em certos casos prevalece o tom encomiástico:

Idealizado e concebido com magistral perícia, "..." é um périplo dos temas caros ao autor que, ao mesmo tempo que amplia o universo das suas personagens obsessivas, nos lega o testemunho de um tempo ensombrado pela incerteza e pela tragédia.

Mas por vezes surgem nas contra-capas obras primas que incorporam na perfeição a essência do livro:

"..." aborda os encobrimentos, artifícios e metáforas com que a memória tinge e decalca as camadas de realidade a que chamamos passado. Celebração do hedonismo imaturo de uma adolescência tardia, e ao mesmo tempo perífrase melancólica de uma idade adulta que não chegou a sê-lo, é uma implacável radiografia das ficções que interpomos entre a vida que nos coube e aquela que desejaríamos. Reconstruindo na voz dos narradores um carrossel de recordações ambíguas que habitam o terreno movediço entre o real e a efabulação do que não chegou a cumprir-se, o autor edifica um fresco enternecedor e cruel onde emergem o trágico e o cómico da condição humana. O subtil artifício literário mais não faz do que devolver-nos, em forma de arte, toda a verdade da pulsão amorosa e das paixões arrebatadoras, e o mecanismo da angústia que pode fazer do mundo um lugar inabitável.

Variações sobre um tema com IVA


O director da Europol já falou do assunto e o Telegraph referiu-se-lhe há dias: fraude de uns cinco biliões à volta do comércio das emissões de carbono. Está descrito no video da EUX.tv: uma companhia compra créditos de emissão num país europeu diferente daquele onde tem sede, depois os créditos são exportados e vendidos a intermediários ainda num outro país. Os intermediários cobram IVA mas não devolvem às autoridades fiscais aquele que receberam. Já se fazia com outros bens de consumo. Transformado o CO2 em coisa transaccionável, o crime fica com oportunidade para variar o tema.
(Via Desde el exilio.)

Alta quê?

Que sigla virá a ser usada para o nosso comboio de alta velocidade? Dá que pensar o exemplo de Itália, onde os comboios Frecciarossa demoram, na melhor das hipóteses, 52minutos a percorrer os 138 km entre Milão e Turim. Os preços em 2ª classe, no entanto, excedem o triplo dos do comboio normal, que demora 1:55. Basta consultar os horários na Trenitalia para ver. Não sei se é apenas o efeito das pequenas distâncias. Não sei se um comboio destes deverá chamar-se de alta velocidade ou de alto preço. É claro que nos enormes percursos ao longo da península italiana a poupança em tempo é atraente. Mas já agora seria interessante termos uma perspectiva realista dos tempos de viagem entre cidades projectados para as nossas futuras linhas.

quarta-feira, dezembro 9

terça-feira, dezembro 8

Propostas para teses de mestrado e doutoramento em coisas globais

Uma questão pelo menos tão interessante como a possível realidade do "aquecimento global" (ou mais modestamente "alterações climáticas"), ou o crédito que merecerá ou não o alarme montado em seu torno, é: porque será que as pessoas que alinham politicamente à "esquerda" tendem mais provavelmente a aderir à atitude alarmista do que as pessoas que se colocam à "direita", entre as quais haverá talvez maior número das que dão crédito aos mais prudentes e cépticos?

Está fora de causa que a adesão a uma ou outra linha se faça com base racional. A crença na teoria apocalíptica está, aparentemente, legitimada pela ciência; mas não é de agora que a ciência está dividida sobre o assunto, e depois do que se sabe há uns dias as dúvidas podem também ficar igualmente legitimadas. Certo é que o grande público não vai examinar os dados e a complexa literatura disponível, dada a tecnicidade da questão. Portanto, adere por uma questão de fé, ou não adere por outra razão qualquer.

As pessoas que aderem fazem-no por uma atitude política com cambiantes religiosos subjacentes. O "aquecimento global antropogénico" é um conceito de sucesso: não só proporciona uma oportunidade para execrar o capitalismo e culpar a civilização pelas desgraças do clima (muito à custa do CO2, veremos até quando) como ainda permite exibir sentimentos altruistas (sinceros da parte de muitos), tipo os mais pobres é que vão sofrer mais se não actuarmos rapidamente. (Os mais pobres, de resto, ficam lixados de qualquer maneira.)

Os que apoiam a facção céptica fazem-no por motivos mais prosaicos, também políticos mas menos religiosos: desconfiam de que valha a pena o gigantesco dispêndio que se anuncia para fazer face a uma ameaça duvidosa e vêem na manobra uma extorsão aos estados e destes aos cidadãos, através da oportunidade para criar novos impostos e novas medidas de controlo das vidas particulares. Pragmaticamente, também os pobrezinhos estão em pano de fundo: o corte no crescimento económico seria ele próprio uma catástrofe não desprezável.

É também interessante notar que com o advento da Climastrologia estamos perante um novo paradigma do uso da ciência ou seja o que for que se faz passar por ela. Saltou-se do ofício intelectual de compreender o funcionamento do mundo real e, naturalmente, prevê-lo, para a tentativa de impôr um modelo que tem muito de especulativo com motivações políticas numa escala nunca antes vista.

Com o que quer que seja

... ..."gay" significa pessoa do género masculino que se entrega a intimidade sexual com outra pessoa do mesmo sexo;
"género" significa masculino ou feminino;
"homossexual" significa pessoa que se entrega ou tenta entregar-se a actividade sexual com pessoa do mesmo género;
"ministro" significa o Ministro responsável pela ética e a integridade;
"tocar" inclui tocar
(a) com qualquer parte do corpo;
(b) com outra coisa qualquer;
(c) por intermédio do que quer que seja.

... ... ...

2. Uma pessoa comete o crime de homossexualidade se
... ...
(c) toca outra pessoa com a intenção de cometer o acto de homossexualidade.
Uma pessoa que cometa o crime descrito nesta secção fica sujeita, se condenada, a prisão perpétua.

3. Uma pessoa comete o crime de homossexualidade agravada se
(a) a pessoa contra quem o crime é cometido tem menos de 18 anos;
(b) aquele que comete o crime é portador de HIV;
... ... ...
Uma pessoa que cometa o crime de homossexualidade agravada fica sujeita, se condenada, à pena de morte.

... ... ...
7. Uma pessoa que ajude, incite, aconselhe ou intermedie para que outra se envolva em actos de homossexualidade comete um crime e fica sujeita, se condenada, a sete anos de prisão.

... ... ...
14. Uma pessoa ou autoridade que, tendo conhecimento de algum crime descrito nesta lei, não faça denúncia às autoridades competentes no prazo de 24 horas, comete crime e fica sujeita, se condenada, a multa até 250 unidades de conta ou a prisão até 3 anos.

... ...

16. Esta lei aplica-se a crimes cometidos fora do Uganda se
(a) cometidos por pessoa com nacionalidade ugandesa ou com residência permanente no Uganda;
... ... ...

17. Uma pessoa acusada de crime ao abrigo da presente lei fica sujeita a extradição de acordo com a legislação existente.

... ... ...

As definições de "orientação sexual", "direitos sexuais", "minorias sexuais", "identidade de género" não poderão ser usadas, sob forma alguma, para legitimar a homossexualidade, doenças de identidade de género e práticas relacionadas no Uganda.


Esta proposta de lei, da autoria de um cristão evangélico, estará em discussão no parlamento do Uganda em Janeiro próximo. Provavelmente dá votos. Provavelmente reflecte uma certa cultura africana. Provavelmente constitui uma afirmação identitária em oposição a algumas tendências do mundo ocidental (Europa e USA): no preâmbulo é referido o objectivo de esconjurar o casamento de pessoas do mesmo sexo. A Igreja Católica tem estado muito calada sobre o assunto. Com excepção de vozes isoladas, a Igreja Anglicana evita também tocar-lhe - com o que quer que seja.

terça-feira, dezembro 1

Lula no labirinto

Em Junho deste ano, o presidente Lula foi um dos primeiros líderes a reconhecer a vitória de Ahmadinejad. E ainda há poucos dias recebeu, com pompa e sob algumas críticas, o presidente do Irão.

"os dois casos são completamente diferentes", já que as eleições iranianas "não violaram a Constituição", enquanto as hondurenhas foram organizadas "por um golpe repudiado por todo o mundo".
"O golpista travestiu-se de político eleito e convocou as eleições sem permitir que o presidente Zelaya fosse responsável pelo processo", criticou.


Oscar Arias, mediador e Nobel da Paz, era de opinião, em Setembro, que as eleições (já marcadas antes do golpe) poderiam resolver a crise. E recordou que a validação de eleições feitas sob regimes tirânicos já permitiu a transição para a democracia em países da América do Sul.

Apesar da situação de crise política e do ambiente de pressão, a participação do eleitorado parece ter sido pelo menos não inferior ao que é habitual no país.

A América Latina e o Mundo estão divididos. Mas mesmo os que não gostam da situação a que se chegou não terão muito que se preocupar: o mandato do eleito, se vier a efectivar-se, durará o par de anos regulamentares. O de Zelaya, de acordo com os planos do próprio, poderia durar o resto do século.

domingo, novembro 29

A memória, a história e as boas intenções aparentes

E os homosexuais? E os ciganos? E os escravos africanos? E os bruxos e bruxas? E os ateus? Os días e as horas de muitos anos não bastariam ao Estado espanhol para por-se de joelhos e pedir perdão a Deus e aos vivos por todas as injustiças cometidas por quem governou ao longo da sua antiquíssima história contra colectividades ou indivíduos diversos. E o certo é que ninguém ficaria satisfeito com o que, para mais, não passaría de uma pantomima desprovida de conteúdo e seriedade.

A propósito de uma iniciativa legislativa do PSOE no sentido de desagravar os descendentes de muçulmanos expulsos de Espanha no início do século 17, Mario Vargas Llosa recorda, no El País de hoje, porque não se deve misturar a memória com a história e porque seria bom que os políticos não usurpassem a função dos historiadores.

Foi menos [brutal] a expulsão dos judeus de Espanha en 1492? Estavam há tantos ou mais séculos na Península que [os mouros] e a sua saída forçada, decidida por razões políticas e religiosas pelos Reis Católicos, acumulou todos os agravantes possíveis.

Há momentos dignos de censura na história de todos os povos, mas não parece adequado apagá-los por decreto. O poder político olha a história do ponto de vista das suas conveniências circunstanciais. No caso concreto, o PSOE está apenas deslumbrado com a descoberta de que os imigrantes dão votos. Mas a luta política pode não ser boa conselheira para o efeito de explicar a história.

domingo, novembro 22

Histórias de encantar



Porque gostamos de ler ou de que nos contem histórias? Talvez, como diz Vargas Llosa, porque "queremos viver outra vida diferente da que nos calhou". Com todas as histórias já mais que contadas, recontadas e requentadas, é um prazer redescobrir a arte e o engenho de inventar os enredos que são, na sua essência, os que não deixaram de ser reproduzidos e de nos apaixonar ao longo de séculos.

Os Contos e Novelas de Marguerite de Navarre são uma joia da literatura no seu sentido mais puro e autêntico: o texto é encantatório e as histórias absorventes, a ponto de nos afligir a aproximação do fim. O que vale é que são muitas, espécie de mil-e-uma-noites em que a Scherazade se chama Parlemente e debita os contos sem ter a cabeça em jogo.

Os episódios são numerados e cada título é uma pequena sinopse do enredo, como:

XXXVI. Um presidente de Grenoble, alertado para as prevaricações da sua mulher, actuou tão sabiamente que delas se vingou sem que a sua honra fosse atingida em público.

XLVI. De um frade que dizia que o marido cometia um grande crime ao bater na mulher.

LIX. Um fidalgo é surpreendido pela mulher quando julgava estar a beijar uma das criadas.

LXVIII. Uma mulher dá de comer ao marido pó de cantáridas para dele receber amor e pensou que ele rebentava.

LXX. Horrível impudicícia de uma duquesa foi a causa da sua morte. e da de duas outras pessoas que se amavam na perfeição.

Na Septuagésima Novela, a duquesa de Borgonha, cuja beleza satisfazia o marido de tal maneira que ele "não cuidava senão de a ter contente", é acometida de uma louca paixão por um jovem servidor do duque. Depois de tentar seduzi-lo sem êxito, vinga-se acusando-o ao marido de assédio. O duque, que tinha grande estima pelo jovem, recusa-se a acreditar. A mulher convence-o, fazendo notar que ao rapaz não se conhecia namorada. O duque quer então saber mais, e o jovem acaba por lhe confessar, implorando segredo, que é amante da senhora de Vergy, sobrinha do seu amo e viúva, que não podia aspirar ter por esposa. Para provar que não mente, o rapaz conduz o duque até ao sítio onde se encontra com a namorada. O sinal de que o caminho estava livre era dado pelo latir de um cãozinho que ela deixava no jardim. O duque fica satisfeito e regressa tranquilo a casa, dizendo à mulher que afinal o rapaz tem um compromisso. A duquesa, ferida no seu amor não correspondido, quer saber com quem; estando grávida, ameaça perder a criança se o marido não lhe contar a verdade, e este cede. Dias depois há festa no palácio e a duquesa aproxima-se da senhora de Vergy, a quem pergunta com o coração trespassado de ciume:
"E tu, bela sobrinha, como é possível que a tua beleza permaneça sem amigo ou servidor?"
"Senhora, respondeeu-lhe a rapariga, a minha beleza nada me trouxe depois da morte do meu marido porque nenhum outro homem eu quis para além dos filhos que me deixou, com os quais vivo feliz."
"Linda sobrinha, linda sobrinha, respondeu-lhe a duquesa com execrável desdém, não há amor secreto que não venha à luz, nem cãozinho bem tratado de que não se escutem os latidos."
Depois é tudo rápido: a senhora de Vergy sente-se traída, imaginando que o segredo só poderia ter transpirado para outra amante do rapaz, e morre de amor ferido depois de um monólogo de duas páginas e meia onde descreve o detalhe da sua dor excruciante. O rapaz vai procurá-la e uma aia que assistira à cena reproduz-lhe as palavras da moribunda; o jovem não suporta a culpa e trespassa o coração com a espada depois de outro monólogo de duas páginas. O duque, posto ao corrente dos factos, percebendo que a tragédia fora causada pela perfídia da mulher, acaba por degolá-la e mandar construir uma abadia para se remir do pecado. Depois "empreendeu uma viagem contra os Turcos, em que Deus o favoreceu tanto que de lá trouxe honra e proveito, tendo recolhido à abadia onde estavam sepultados a mulher e os dois amantes, lá tendo passado a velhice em paz com Deus".

As personagens não têm nomes mas são incrivelmente próximas de nós. A diferença é que quando dizem que vão morrer de amor morrem de facto, não sem antes declamarem em sofisticada prosa as razões da sua angústia e de o mundo se lhes ter tornado um lugar inabitável.

Mentiras convenientes?

Se a autencidade dos documentos for confirmada (e parece que tudo aponta para aí) poderemos estar diante de de um escândalo monumental - o maior da ciência moderna, pensam alguns. O facto começou a ser comentado na internet há dois dias atrás e dele não param de surgir reproduções sucessivas.

Um hacker terá entrado nos computadores do Centro de Investigação do Clima da Universidade de West Anglia e colocou na net muitos mega de e-mails e ficheiros confidenciais onde, ao que parece, há documentação suficiente para provar que o "aquecimento global antropogénico" é um embuste antropogénico. Os ficheiros incluem:

-prova de que houve manipulação intencional de dados para obter resultados pré-determinados;

-comentários em privado onde perpassam dúvidas de que a Terra esteja em fase de aquecimento;

-conversa sobre supressão de provas inconvenientes;

-discussão sobre como silenciar os cientistas discordantes, através do seu afastamento do processo de revisão pelos pares e da descredibilização de certas revistas científicas.

Poderemos estar diante de de um escândalo monumental, escrevi acima, mas seria mais correcto escrever "poderíamos". Mesmo que tudo, ou boa parte, seja confirmado, as ideias feitas não morrem de um dia para o outro, principalmente se dão proveito económico e ideológico a muita gente. No limite, poderemos estar diante de uma conspiração sinistra para extrair dinheiro aos estados através das taxas de poluição. Mas quem se importará, se a ideia é simpática e de alta rendibilidade? Também depois do escândalo Sokal, em 1996, a "literatura académica" continuou a produzir discursos demenciais em áreas como a educação e certas ciências sociais. E nem depois da queda do muro foram seriamente abaladas as simpatias por um sistema político que, para além de não resolver os problemas dos povos, causou escravização, degradação e mortes aos milhões. Que efeito sensível podem, então, ter revelações cuja comprovação só pode ser feita no recato de gabinetes e laboratórios, confrontando dados e procedimentos cuja manipulação exige especialização técnica?

sexta-feira, novembro 13

O prazer nas tuas mãos

O conselho da Juventude do governo da Extremadura acaba de lançar a campanha "O prazer nas tuas mãos" dirigida a jovens dos 14 aos 17 anos. Os objectivos confessados são:
"construir espaços de intercâmbio e participacão onde sejam abordadas as preocupacões e as angústias dos jovens sobre a sexualidade" e "facilitar a aquisisição, desenvolvimento e interiorização de hábitos saudáveis, autoestima, segurança e pôr em prática através da autoexploracão sexual e do autoconhecimento erótico do ponto de vista de uma perspectiva feminista..." bláblá. Nada muito diferente, na forma da redacção, dos objectivos de disciplinas convencionais do currículo do ensino básico emanados dessas entidades assombrosas que são os ministérios da educação. Só que aqui o programa vai mais longe, dele fazendo parte carícias, masturbação e utilização de brinquedos como as bolas chinesas. Os jornais dizem que a campanha custou 14000€ e foi encomendada à loja madrilenha Los Placeres de Lola.

Há aqui várias coisas estranhas. Primeiro, acho a campanha muito barata, o que sugere o uso de bolas de má qualidade. Segundo, deve ter havido um erro de casting monumental na escolha do público-alvo: tenho a certeza que muitos adultos acima dos 50 teriam muito mais a aprender nestas aulas do que os xavalos e xavalas nos 14-17. Finalmente, com tanta preocupação de igualdade de género e focalização no ponto de vista feminista, é imperdoável que o título da campanha mencione a mão e omita o dedo. Ah, o discurso machista insinua-se por onde menos se espera.

quarta-feira, novembro 11

O fabuloso destino de Suha

Espectador à beira do adormecimento com o enrolar da novela sobre a corrupção caseira, não posso deixar de lamentar a pobreza do enredo. Também, que se pode esperar de um tema que chafurda em sucata? Nem dá para argumento de um filme sem subsídios. De resto, como tudo se reduz a casos tratados pelo telefone, bastaria fazer um folhetim radiofónico ou um filme só com banda sonora como a Branca de Neve. Infelizmente, ambos os formatos parecem fora de moda, um por ser muito atrás e outro demasiado à frente para os gostos contemporâneos.


Então, até porque hoje é aniversário da defunção do seu saudoso (haha) marido, dei por mim a lembrar-me de uma senhora com uma história bem mais engraçada. Segunda e última esposa daquele homem que lançou a moda dos lenços aos quadrados e também foi o chefe da resistência palestiniana que boicotou o acordo de Camp David, Suha Arafat já vivia em Paris quando o esposo lá passou os últimos dias. No papel de cônjugue pode controlar o acesso às cenas dos últimos momentos, após as quais ficaram no ar teorias conspirativas segundo as quais o líder teria morrido por envenamento ou SIDA (ambas as alternativas gozam de bastante popularidade). A sua conta bancária engordou consideravelmente com as transferências provenientes das ajudas internacionais à causa palestiniana, digo, à Autoridade Palestiniana. Investiu em hotelaria em Tunes e, após a passagem do marido por este planeta, não contente com o que já amealhara, exigiu à AP uma pensão vitalícia. A AP concordou em fazer-lhe um pagamento fixo de 20 milhões de dólares e uma pensão mensal de 500 000, coisa que ela parece ter recusado, por saber que a fortuna da PA se mede com mais uns zeros (ah, a pobreza que gera o terrorismo).



Suha volta então à Tunísia e, experiente como é a escolher a cama onde se deita, procura a provavelmente mais corrupta família do país para voltar a casar. E fá-lo com Bel Hassan Trabelsi, cunhado do presidente, aliando-se à sua irmã Leila Trabelsi para os grandes investimentos imobiliários. As coisas não lhe correram tão bem como esperava: Bel Hassan era casado e a lei tunisina não permite a poligamia.

A partir de então, também a amizade com a ex-futura-cunhada se estraga e começam as acusações, sem dúvida merecidas, porque, ao pé de Leila, Suha é menina de coro. Teve graça, por exemplo, o episódio em que Leila manda fechar um liceu privado para abrir um outro de que ela e Suha teriam a propriedade, mas logo que Suha entra com a sua quota (2,5 milhões de euro), Leila rói o cordel. As desavenças entre as duas têm como subproduto o levantar do véu sobre uma mão cheia de aldrabices que envolvem quantias com muitos zeros.

Acaba expulsa do país, tendo o ex-futuro-novo-marido ficado na posse dos seus bens. Um dos últimos escândalos com a pegada de Suha relaciona-se com mais um grande empreendimento imobiliário de que resultou o favorecimento de um genro do presidente tunisino e motivou inquietação no próprio partido do poder.

Actualmente Suha vive em Malta, numa casita que, diz-se, lhe foi oferecida pelo coronel Kadhafi, tendo-lhe sido retirada a nacionalidade tunisina (que lhe tinha sido atribuída por decreto) na sequência das trapalhadas com a família presidencial.

segunda-feira, novembro 9

Apenas 1 em 20

Segundo um recente inquérito, apenas uma de cada vinte crianças britânicas pensa que Hitler foi um treinador de futebol. Quase 80% acham que ele era chefe do partido Nazi e apenas 13% o apontam como tendo descoberto a gravidade no século 17.

É caso para estarmos optimistas. Em contrapartida, os peritos da educação que inundam os gabinetes ministeriais europeus devem levar as mãos à cabeça. Apesar dos tratos de polé que têm infligido ao ensino-aprendizagem (haha), a taxa de penetração de ensinamentos errados é relativamente modesta. Urge inflectir e passar rapidamente à proibição formal de que nas escolas se ensine o que quer que seja (o que até aqui é apenas insinuado sob ameaças veladas).

Perestroika?

Para lá dos festivos dominós que assinalarão a queda do Muro, sondagens que denunciam moderação no entusiasmo com a mudança, e avisos sobre o estado da arte no capitalismo vêm lembrar-nos que a complexidade do mundo real está muito para além das representações simplistas com que julgamos compreendê-lo nos momentos de euforia.


Algum desencanto com a democracia e a economia de mercado tem as justificações que conhecemos, e todas as frases que sobre isso se escrevam vão desembocar à palavra "crise". Mas não deixa de apetecer parodiar os que sempre pensaram que o sistema de Leste ruiu porque aquela inominável coisa não era socialismo. E esta inominável coisa que etiquetam de neo-liberalismo selvagem, é mesmo capitalismo com mercado a funcionar livremente?


É irónico que Gorbachov reclame a urgência da nossa perestroika. Sem dúvida que está a pensar em Obama (curiosamente, são eles os dois presidentes em exercício que foram Nobelizados). Por muito que devamos a Gorbachov, o seu apelo é pouco apropriado para levar a sério: na medida em que Gorbachov perdera a vontade de dar cobertura ao sistema a que presidia, a comparação pode ser entendida como um recado a Obama para que desista dos Estados Unidos. Não é fácil indicar uma causa única para a queda do Muro, mas parece evidente que sem a falta de vontade de o defender a história que conhecemos teria tido um outro desfecho.

domingo, novembro 8

Onde estavas no 9 de Novembro?

De Nicolas Sarkozy, ficamos a saber pelo Facebook.

Crimes e castigos

Um homem de 33 anos, condenado por adultério, foi executado por apedrejamento na cidade de Merka, perto da capital da Somália, conta a BBC. A amante, grávida, será executada pelo mesmo processo logo que dê à luz a criança produto do crime.

Columbine versão jihad

Nas primeiras notícias, Nidal Malik Hasan era um psiquiatra, descendente de palestinianos, a quem o stress levou ao acto homicida desesperado de que resultaram treze mortos.

O caso passa-se em Fort Hood, zona livre de armas, onde os regulamentos impedem os militares de andar armados em circunstâncias normais, como é o caso de fazer fila para uma vacina.

Mas sabemos agora que Hasan evidenciava já há tempo comportamentos que no mínimo deveriam ter dado lugar a algumas precauções. Era conhecido o seu repúdio pelas intervenções dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão e preparavam-se para enviá-lo para o Afeganistão. O problema não é ser muçulmano (será?), é existirem razões que deveriam ter motivado alguma prevenção. Colegas de profissão recordam uma bizarra conferência de Hasan durante a qual ele referiu o ensinamento do Corão sobre como proceder com as cabeças dos infiéis: degolar e lançar ao fogo.

Por muito que se tente disfarçar, há nesta história negligências que parecem óbvias. Como pode uma pessoa assim ser mantida a prestar serviço numa unidade militar? Haverá muita explicação para os assassinatos com base no bláblá psiquiátrico. Mas o facto de se tratar de um muçulmano devoto dificilmente será assumido ou apontado como provável causa da tragédia. As razões também são óbvias: logo viriam as acusações de islamofobia ou racismo que ninguém hoje em dia aguenta. Infelizmente, os muitos actos terroristas levados a cabo por muçulmanos radicais aconselhariam a colocar a hipótese, nem que fosse por mera curiosidade científica. Além de que ninguém se livra de uma fatwa de algum louco que se sinta ofendido por ver classificar a devoção ao Islão como anomalia psíquica.

segunda-feira, novembro 2

Golpes e pressões

Sob pressão dos Estados Unidos, o proto-golpista Zelaya assinou na 6ª feira o acordo para a saída da crise política nas Honduras: a "restituição" ficaria nas mãos do Congresso. Ainda mal o mundo descansava ao ver a resolução do problema entregue aos hondurenhos através de compromisso escrito, vêm os porta-vozes de Zelaya ontem, sem surpresas, anunciar que o acordo só será válido se o Congresso decidir a favor do homem que foi empurrado em pijama.

Zelaya já vale pouco neste momento. Será que o próprio Chávez aposta nele? A "legítima ministra dos negócios estrangeiros", Patricia Rodas, seria para o socialismo do Século XXI uma candidata bem mais apetecível. Em Zelaya está difícil confiar e os negociadores dos Estados Unidos sabem bem disso. Para que o homem mantivesse a sua posição durante mais de dois dias seguidos lá teria de estar sempre o diplomata a dizer-lhe ó pah, se te desdizes mando a bófia atrás do Héctor, agora vê lá. Thomas Shannon tem mais que fazer.

domingo, novembro 1

Mario Vargas Llosa sobre o declínio do erotismo


Também no El País de hoje, e a propósito da exposição do Museu Thyssen e Caja Madrid, Vargas Llosa discorre sobre o lado bom e o lado mau da vulgarização do erotismo. Passa em revista a inspiração fornecida pela antiguidade pagã e também pelo cristianismo, que proporcionou a grandes artistas o ensejo de nos darem a contemplar inúmeras Evas, Madonas, Cristos, São Sebastiões e mais todos os santos e santas do calendário, desafiante exibição do corpo que a censura eclesiástica não pôde deixar de tolerar.


Com o desaparecimento dos bloqueios censórios, o erotismo banaliza-se, e com ele a arte que inspira. Llosa convoca o Endimião Adormecido de Canova para o opor à frivolidade do video David (de um autor de que provavelmente não valerá a pena reter o nome), que voyeuriza o sono de Beckham.


Mas somos, provavelmente mais felizes do que antes. Menos censura é também menos constrangimento e menos discriminação. A arte ficou a perder? "Fazer amor já não é uma arte, é um desporto sem risco, como correr no tapete do ginásio"? Paciência. Não se pode ter tudo.

Nove argumentos a favor de Polanski

Por Bernard-Henry Lévy, hoje no El País.

O estudante de Matemática e o Ayatollah

Na passada quarta feira, um estudante do 2º ano de Matemática da Universidade de Sharif, identificado como Mahoud Vahidnia, foi figura central num encontro com o lider Supremo, a quem questionou durante 20 minutos sobre a falta de liberdade de expressão e a estrutura do poder no país. Hoje, o Corriere della Sera escreve que Mahoud está preso. As notícias são pouco precisas e nalguns sítios discute-se se o episódio foi encenado pelo regime.

Heimatlos, os mundos desaparecidos

Considero-me apátrida. A minha pátria desapareceu, a RDA. Não considero a RFA a minha pátria. A minha pátria hoje é a minha família próxima, são os meus amigos.

Palavras de Werner Grossmann, último chefe da Stasi, à Radio France Internationale. Uma das suas últimas missões foi, em colaboração com o KGB, tratar do exílio pacífico do casal Honecker no Chile. Depois da expulsão de Honecker do partido, ter-lhe-á aconselhado uma de quatro opções: Coreia do Norte, Cuba, Palestina ou Chile. Em Moscovo ninguém garantiria a segurança do ex-presidente, a Coreia do Norte não era de fiar e tanto Cuba como a Palestina não ofereciam garantias.

domingo, outubro 25

Tratamento da congestão nasal sem recurso a medicamentos e outras histórias

Vai por aí uma discussão interessante sobre o processo de "peer review" nas revistas científicas. Parece que a conclusão é que, tal como a democracia, o sistema pode não ser isento de falhas mas ainda é o mais fiável e preferível.

A história é suscitada por um bruahh que envolve um jornalzinho publicado pela Elsevier, Medical Hypotheses, e pelas pressões que levaram o editor a recusar recentemente um artigo de Peter Duesberg, bem conhecido negador da relação HIV-SIDA.

O Medical Hypotheses publicou, entre muitos outros panfletos, um artigo que recomenda a ejaculação, por relações sexuais ou masturbação, como terapia para a congestão nasal nos machos adultos.

Who wants to be a millionaire?



Who wants to be a millionaire? I don't
Have flashy flunkies everywhere? I don't
Who wants the bother of a country estate?
A country estate is something I'd hate

Who wants to wallow in champagne? I don't
Who wants a supersonic plane? I don't
Who wants a private landing feel through? I don't
And I don't 'cause all I want is you

Who wants to be a millionaire? I don't
Who wants uranium to spare? I don't
Who wants to journey on a gigantic yacht?
Do I want a yacht? Oh, how I do not

Who wants a fancy foreign car? I don't
Who wants to tire of caviar?
Who wants a marble swimming pool too? I don't
And I don't 'cause all I want is you

Who wants to be a millionaire? I don't
And go to every swell affair?
Who wants to ride behind a liveried chauffeur?
A liveried chauffeur, do I want? No sir

Who wants an opera box I'll bet? I don't
And sleep through Wagner at the met? I don't
Who wants to corner Cartiers too? I don't
And I don't 'cause all I want is you

Dos 2,2 milhões de ricos que se presume existirem na Alemanha, 44 subscreveram uma petição a Angela Merkel suplicando-lhe que obrigue toda a corja de milionários a pagar mais impostos. 5% ao ano durante dois anos, pedem eles. Dizem que têm dinheiro a mais de que não precisam. Receio que os outros 2 199 956 julguem que precisam mesmo dos 500 000 euros ou mais que possuem -- o limiar de fortuna que para os peticionistas define o que é um rico. E digo isto sem maldade, até porque estou de acordo com o critério adoptado, e de acordo prometo continuar, enquanto a minha fortuna não atingir os 500 000 euros.

Na passada quarta feira estes ricos complexados manifestaram-se no centro de Berlim e, num gesto mediático carregado de significado, atiraram ao ar notas falsas. Depois ficaram surpreendidos de ninguém ter acorrido à convocatória. Talvez para a próxima lhes corra melhor, como alguém observou aqui, se prometerem distribuir notas a sério.

quarta-feira, outubro 21

O plágio indecoroso

No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra era vazia e informe; e as trevas cobriam a face do abismo. O Espírito de Deus movia-se à face das águas.
E Deus disse, Haja Luz: e houve luz.
Deus viu a luz e viu que era boa: e separou a luz das trevas.
À luz chamou Dia e às trevas Noite. A noite e a manhã foram o primeiro dia.

Esta linguagem poética sofisticada é obviamente uma cópia de Saramago. A vírgula a introduzir sistematicamente o discurso directo, a narrativa hipnótica, a efabulação abundante não enganam ninguém. Até tem logo no início um episódio copiado do último romance do ibérico nobelizado, e lá para o fim aparecem quatro (quatro!) evangelhos copiados de um livro mais antigo do celebrado escritor, com esse nome. Isto é indesmentível. Tem muito mais histórias de amores e ódios e doutrina e violência, que quase certamente, temos razões para suspeitar agora, foram copiadas de manuscritos que Saramago tem na gaveta. É por isso compreensível a fúria do escritor. Só não se percebe porque é que o insigne plumitivo não move um processo de plágio ao críptico autor. Com tanto jornalista no encalço, iriam descobri-lo sem demora. Escusava de se desculpar com um Deus que ele sabe não existir. Saramago está a gozar connosco. Saramago não é de fiar.

Post scriptum não irónico: este episódio deu oportunidade a umas figuras caricatas para aparecerem em público, umas para exibirem no contra-ataque uma repetição de ridículos passados, outras para "discutirem" com o escritor. Era melhor, ao contrário do que diz o título de um outro livro, que não trocassem mais palavras sobre o assunto. Ninguém está preocupado com ele, como comprovaram quatro tristes contra-manifestantes de uma seita evangélica de que não recordo o nome, que as televisões ontem (sábado) humilhantemente mostraram, em Penafiel, surpreendidos por não ter aparecido mais ninguém...

Quanto a Saramago, é feio dizer tanto mal de um livro bem escrito (mesmo que não se simpatize com o conteúdo e as interpretações que os crentes lhe dão), que já lhe proporcionou histórias para duas novelas e cujo estilo narrativo o influencia, talvez sem se dar conta, há muito.

quinta-feira, outubro 15

Compare

Já pode aqui cada um comparar a sua fortuna pessoal com a de José Luiz Zapatero e restantes membros do governo de Espanha.

terça-feira, outubro 13

Mandato de captura de fino recorte literário: há 702 anos

Uma coisa amarga, uma coisa lamentável, uma coisa horrível de pensar, terrível de saber, uma coisa abominável, um delito atroz de celerados, uma infâmia medonha, uma coisa de facto inumana, pior ainda, alheia a toda a humanidade, soou aos nossos ouvidos pelo informe de pessoas credíveis não sem nos atingir com um profundo estupor fazendo-nos estremecer com um horror violento... Um espírito razoável sofre, sem dúvida, ao ver desafiados os limites da natureza; é atormentado sobretudo porque esta estirpe, esquecida da sua origem e ignorante da sua dignidade, pródiga de si, entregue a sentimentos censurados, não compreendeu porque lhe renderam honras. Ela é comparável aos animais privados de razão, que digo? ultrapassando a brutalidade dos próprios animais, comete os crimes mais abomináveis que a sensualidade dos próprios animais irracionais execra e rejeita. Abandonou o seu Criador, separou-se de Deus, sua salvação, esqueceu o Senhor, sacrificou aos demónios e não a Deus...

Prólogo da carta de Guillaume de Nogaret, enviada a todos os policías, barões e homens do rei França em postos de comando, em 12 de outubrode 1307, preparando a detenção em massa dos templários na madrugada do dia 13.

domingo, outubro 11

Klaus e Lisboa

De acordo com esta notícia de há 3 dias, Vaclav Klaus pretende ver a inclusão no Tratado de Lisboa de um "roda-pé" relacionado com a Carta Europeia dos Direitos Humanos. Entretanto passa a constar que a exigência do presidente checo tem a ver com uma cláusula de impedimento de reclamações alemãs sobre propriedades confiscadas por Praga em 1945.

O tratado já prevê:

53. Declaration by the Czech Republic on
the Charter of Fundamental Rights of the European Union
1. The Czech Republic recalls that the provisions of the Charter of Fundamental Rights of the European Union are addressed to the institutions and bodies of the European Union with due regard for the principle of subsidiarity and division of competences between the European Union and its Member States, as reaffirmed in Declaration (No 18) in relation to the delimitation of competences.
The Czech Republic stresses that its provisions are addressed to the Member States only when they are implementing Union law, and not when they are adopting and implementing national law independently from Union law.
2. The Czech Republic also emphasises that the Charter does not extend the field of application of Union law and does not establish any new power for the Union. It does not diminish the field of application of national law and does not restrain any current powers of the national authorities in this field.
3. The Czech Republic stresses that, in so far as the Charter recognises fundamental rights and principles as they result from constitutional traditions common to the Member States, those rights and principles are to be interpreted in harmony with those traditions.
4. The Czech Republic further stresses that nothing in the Charter may be interpreted as restricting or adversely affecting human rights and fundamental freedoms as recognised, in their respective field of application, by Union law and by international agreements to which the Union or all the Member States are party, including the European Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms, and by the Member States' Constitutions.


À primeira vista, as notícias recentes sobre a demora de Klaus em relação a Lisboa parecem ser pretextos ou despistes. Mas vai ser interessante assistir ao duelo político entre o presidente e a Presidência da UE e avaliar o significado do que ele vai conseguir, se o seu plano resultar, em troca da assinatura. Ao menos assim sempre vamos ler alguma coisa do tratado.

sábado, outubro 10

O Prémio e os motivos

Jagland said the decision was "unanimous" and came with ease.

He rejected the notion that Obama had been recognized prematurely for his efforts and said the committee wanted to promote the president just it had Mikhail Gorbachev in 1990 in his efforts to open up the Soviet Union.


Abrir? era mais fechar, no sentido de encerrar, dissolver (felizmente) o regime a que presidia. Pouco mais de um ano depois de o prémio ter sido atribuído a Gorbachov, a União Soviética terminava a sua existência.

Julgo que o comité Nobel está a ser demasiado optimista (felizmente, também) em relação a Obama. Ele não lhes vai fazer aquela vontade inconsciente.

Fora de cinismos, foi mais um assédio do que um prémio: carregado de voluntarismo de quem o atribui e de uma agenda com trabalho de casa para o agraciado, o Nobel da Paz 2009 está de acordo com a concepção "new age" de que tudo se resolve com boas intenções e pensamento positivo.

domingo, outubro 4

Dilemas morais

A castração química é justa ou afronta os direitos humanos?

O apoio a um bom cineasta, violador de uma rapariga de 13 anos, por parte de pessoas simpáticas, abona aquele ou prejudica estes?

sábado, outubro 3

Veja quem esteve lá

Foi esta tarde, na Piazza del Popolo em Roma: manifestação com muitos milhares (150 000 ou 300 000, dependendo das fontes). Aquelas pessoas sairam à rua pela liberdade de imprensa, contra a asfixia de Berlusconi. Não sei como se publica uma foto destas: logo à noite já deve haver centenas de prisões.

Agora a sério: Silvio processou meios de comunicação que o têm tratado muito mal. A manifestação arremete também contra a recente lei do "escudo fiscal" que protege a evasão de capitais. Mas não deixa de ser curioso o mote da "liberdade de imprensa", no país onde quase todos os jornais dão sistematicamente desonras de primeira página ao chefe do governo e onde há canais de tv que dão generoso tempo de antena às escorts de serviço ao cavaliere. É verdade que os canais dominados por Silvio fazem campanha acesa contra os não devotos, mas ainda na noite do dia 1 uma prostituta contou detalhes das suas relações com B. num programa de tv de grande audiência.

Berlusconi está a lutar contra a comunicação que não controla e isso merece a mais forte oposição. Mas boa parte dos ataques que lhe têm feito, ao incidir sobre o comportamento íntimo do primeiro ministro, deixam os autores muito mal na foto. Uma fita sem bons, como tantas outras.

quarta-feira, setembro 30

O debate sobre a reinserção na Arábia Saudita

No passado dia 23 de Setembro um grupo de jovens provocou distúrbios e destruição num centro comercial de Alkhobar, no leste da Arábia Saudita. O caso provocou escândalo e um debate aceso: a juventude da região é tida como habitualmente bem comportada e por isso há interrogações no ar sobre as razões do acto e sobre o que se poderá fazer para impedir a sua repetição.

Diz um director de jornal que há com certeza culpa dos pais, mas também da falta de ocupação em actividades desportivas; os jovens aprendem tudo na internet e os psicólogos comportamentais terão de prestar atenção ao assunto. Os comentadores são unânimes em dizer que é preciso retirar estes jovens dos centros comerciais e dar-lhes uma orientação. As opiniões dividem-se sobre o castigo a aplicar, de modo a que fiquem a saber que os seus actos têm consequências. Há uma forte corrente de opinião orientada para as penas não detentivas, já que a prisão pode ainda agravar o carácter de quem tem maus instintos. Mas lá não valem as teorias da Profª Fernanda Palma: são poucos os que optariam por multas ou pelo trabalho para a comunidade, e entretanto a pena aplicada - 30 chicotadas em público para cada um dos doze que já confessaram o crime - parece ser encarada com aprovação, apesar das vozes dissonantes.

O caso vem contado no Arab News. E a notícia também veio ontem no Daily Mail online, com uma cauda de comentários onde muitos lamentam a abolição das penas medievais no Reino Unido. Assim vai o Mundo, como diziam dantes os noticiários no cinema.

domingo, setembro 27

Angústia do eleitor

Logo, às 20 horas, haverá uma ordenação dos candidatos. O mais provável é que praticamente todos fiquemos a perder. O mecanismo amável da democracia vai garantir, como disse um outro, que não seremos governados por ninguém melhor do que nós.

sábado, setembro 26

Dias de reflexão (post lascivo)



(em popmodal)

They say that bears have love affairs
And even camels
We're men and mammals--let's misbehave!!!

domingo, setembro 6

A frase inconveniente de Judite

Quem é responsável pelo banimento do Jornal das sextas na TVI? Tão risível é esperar uma resposta clara, com assinaturas por baixo, como o argumento da "falta de qualidade". A questão mais abrangente de saber quem moveu influências que levaram à decisão é mais simples. A resposta, dada em inúmeros comentários que traduzem convicções razoáveis assentes em factos recentes, já foi escrita e abundantemente publicada.

Por isso a primeira questão não é importante. Nem a de saber se houve cálculo do risco eleitoral para o PS. Por isso a pequena frase assassina, que ontem à noite Judite de Sousa proferiu sob a forma de pergunta a Jerónimo, tanto irritou Sócrates. O primeiro ministro de imediato se encrespou e censurou a pergunta, como quem diz: oiça lá, está a insinuar que o papa sou eu? E não é despiciendo que as palavras tenham vindo de uma funcionária bem comportada. A frase saiu-lhe tão espontânea que denuncia a existência de uma convicção difusa de que, neste episódio, paira no ar uma influência que não necessita de se explicitar em cada momento concreto - os agentes adequados saberão tomar as decisões, sem consultar em cada minuto a instância a que pretendem agradar.

É este o aspecto mais grave do caso. Se de "asfixia" se pode falar, é precisamente na situação em que quem manda já não precisa de dar as ordens em permanência, porque os recados já foram muitos e claros. Motivos para a PRISA e para a Media Capital não faltarão. Mas não nos dêem música, por favor, com a qualidade ou a "homogeneização". Faz-me logo lembrar, salvas as distâncias entre os casos, as "razões humanitárias" da libertação do líbio condenado a prisão perpétua no UK.

quarta-feira, setembro 2

Do Cacém ao Iraque

A política nacional é pouco interessante, mas vamos ser chamados a votar. Não só por essa razão, um frente a frente como o de há minutos é um espectáculo com algum fascínio. Que nos atrai quando ficamos colados ao sofá a escutar os dois debatentes? Para muito poucos, um motivo para escolher entre os dois. Para a maioria, observar o desempenho dos actores e as habilidades de cada um para levar a melhor. Uso a palavra "actores" no sentido mais tradicional e não na sua ampla significação mais em voga. É de espectáculo que se trata e o talento em jogo é a capacidade de passar rasteiras ou de lhes sobreviver.

O formato é muito limitador, circunscrito a temas paroquiais. Dirão que se não fosse assim talvez não se conseguisse ouvir nada. A razão profunda pode ser mais prosaica e mesquinha: é que em tema aberto seria intoleravelmente difícil decorar papéis. Havia dois nervosos: Constança e Sócrates. O saldo final é ambíguo mas do lado de Sócrates houve certos sinais de fraqueza (ao reclamar contra a subversão das regras do debate dá a ideia de que prefere "safar-se bem" a ver um determinado ponto esclarecido; e em desespero a invocar o Iraque). Isto não quer dizer que do outro tenha emergido um sinal de grande força. O espectador experimentado adivinha o trabalho dos encenadores por trás - mais conspícuo no caso de Sócrates, porque Portas é um actor de nascença e Sócrates um actor de escola - em vez de se concentrar no argumento: um clássico, aliás. Com pinceladas de farsa: nas falas de abertura, assistimos ao suposto representante das políticas de extrema direita (lol) regatear com o representante das políticas ditas socialistas quem é que tinha distribuído mais dinheiro aos jovens e aos velhotes.

E quem ficará a ouvir Jerónimo e Louçã? O nosso cinismo tem limites. Queremos drama e conflito, mesmo que pressintamos a ficção subjacente. Vamos mas é aproveitar para nos reabastecermos de pipocas até à continuação do filme.

domingo, agosto 30

Unasul e as setas



Uma das setas para baixo na última página do PÚBLICO de ontem contempla o presidente Uribe da Colômbia. O pequeno texto com assinatura M.C. dá a entender que Uribe sai vencido da cimeira da UNASUL, e o artigo da página 13 não é muito mais claro. O assunto não é retomado na edição deste domingo.


Infelizmente, as setas do PÚBLICO costumam traduzir mais os estados de alma dos seus redactores do que a substância dos factos. Uma leitura do que se publicou sobre a cimeira da Unasul aconselharia maior cautela nas conclusões. Nem Uribe surge como derrotado - ao contrário, a insípida declaração final permite-lhe seguir em frente com o plano de presença militar dos Estados Unidos e reafirma a necessidade de combater o terrorismo e o narcotráfico - nem nenhum participante sai em posição de liderança. Em particular, Lula é uma figura discreta.

No entanto, a reunião deve ter sido bem divertida, graças às intervenções cómicas de Hugo Chávez (incluindo as respostas que deu a jornalistas no final). O pequeno ditador levava no bolso uns planos secretos das forças armadas americanas
para a invasão da América do Sul. Uribe observou que os "planos" são um documento académico de acesso livre na internet. O momento mais bem disposto seguiu-se às queixas de que os Estados Unidos querem apossar-se do petróleo venezuelano: o presidente Garcia, do Perú, perguntou então a Chávez: porque é que hão-de de estar preocupados com o petróleo se tu já o vendes todo aos Estados Unidos?

Está contado em vários sítios, por exemplo no ABC, no Globo e na análise do Daniel.

Parece que a reunião foi transmitida pela tv. Um moderado azar para Chávez a nível interno: como actor de tv deve ter tido uma das suas piores prestações

sexta-feira, agosto 28

As tentações de Saramago

Detesto o ideário político de Saramago e gosto muito de muitas das suas novelas. Mas para Saramago deus é uma tentação perigosa: o "evangelho" é das suas obras menos interessantes (apesar de um prólogo deslumbrante, cheio de religiosidade) e suspeito que o "caim" irá pelo mesmo caminho. Porque, para além da forma, tudo é quase previsível: trata-se de maltratar (merecidamente ou não, isso é irrelevante) o deus das escrituras. Isto para já não mencionar que a qualidade das novelas publicadas se encontra em rampa francamente descendente pelo menos desde a "Cegueira".

O tempo que Saramago dedica a deus mostra bem que, ao contrário do que o escritor vocifera, deus existe. Ocupa pelo menos um espaço importante na sua cabeça. Talvez por ocupar espaço nas cabeças de muitos de nós, o que o irrita militantemente. Como àqueles simplórios do "É provável que Deus não exista..." escrito em autocarros, apetece dizer-lhe, o Zé, é provável que muita coisa em que você acreditou e acredita também não exista, por isso não se chateie, viva a sua vida, escreva lá sobre poetas, bruxas, clones e funcionários do registo civil.

Cuidado com a cultura


Não é preciso ficar embasbacado diante de certas peças da colecção Berardo para fazer figura de totó. Isso pode acontecer até em museus de prestígio confirmado. O pedaço de Lua exposto no Museu Nacional de Amsterdão é falso - não passa de um bocado de madeira fóssil que não vale mais de 50 euros, diz o Corriere della Sera. A peça fazia parte da colecção pessoal do primeiro ministro Willem Drees, e fora oferta do embaixador americano. Como tudo hoje tem valor museológico, o bocado de madeira pode continuar tranquilamente a sua carreira, com o valor acrescentado de uma gargalhada.

segunda-feira, agosto 24

domingo, agosto 23

"Esclarecimento"?

No dia 16 o PÚBLICO contava, em artigo de Clara Viana, que a empresa criada para realizar as obras de modernização em escolas secundárias - a Parque Escolar - poderá não ter observado todas as normas legais na celebração de contratos com os arquitectos concorrentes. Privilegiando o ajuste directo sobre o concurso público, as encomendas terão contemplado apenas um pequeno número de profissionais. O artigo transcreve breves declarações do Presidente da Ordem dos Arquitectos, que são críticas relativamente ao procedimento da Parque Escolar.

Sobre este assunto, que não me interessa particularmente, apenas tinha anotado à pressa, para mim, duas coisas: que o investimento previsto é muito significativo e que os reflexos da iniciativa para a melhoria do ensino não devem sê-lo na mesma medida. Mas adiante.

Hoje o PÚBLICO inclui uma Carta ao Director do Conselho Directivo Nacional da Ordem dos Arquitectos. O tema é o artigo do dia 16. A carta ocupa as cinco colunas usuais e está dividida em 8 pontos. Nos pontos 5 e 8 lê-se uma concordância muito discreta com as frases do Presidente inseridas no referido artigo. Os pontos restantes explicam por que razão a Ordem não se revê no (re)enquadramento dado às declarações do Presidente (sic). Para além de um discurso asséptico sobre a importância das obras em curso e o excelso papel dos arquitectos na sua concretização, nos pontos 1,2,3,4,6 e 7 encontram-se os "porém", os "por outro lado", os "aliás" que compreendem e desculpam eventuais atropelos à lei por parte da Parque Escolar.

Eu não faço a mínima ideia do que se passa dentro da Parque Escolar, nem da Ordem dos Arquitectos, nem do sentir dos associados a respeito deste episódio, se é que ele os preocupa. Mas a Carta ao Director deixou-me um pouco estupefacto, como se diz agora. A pensar nas razões da Ordem para vir exibir tao conspicuamente a sua compreensão.

sábado, agosto 22

O avião que caiu duas vezes




Com toda a candura, um filho de Khadafi diz o que jornais ingleses já tinham insinuado: que há negócios de petróleo por detrás da libertação do alegado canceroso Megrahi. Com outra candura ainda maior, o governo do Reino Unido desmente o filho do líder líbio.

Canceroso terminal com um aspecto óptimo (certamente graças ao serviço de saúde no UK) Megrahi é recebido como herói na Líbia, afirmando que está inocente e não fez nada. Ora, sabendo nós do que a casa gasta, se não fez nada porque é que lá o aclamam como herói?

Os que o libertaram dizem-se agora chocados com a recepção em Tripoli. Dos EEUU vêm declarações muito profissionais com todos os adjectivos que qualquer texto em diplomatês deve incluir nas alturas em que falta vontade para efectivamente influenciar os factos: outrageous, disgusting, objectionable.

Com o devido respeito às 270 vítimas, o problema é que nesta estorieta da segunda queda do voo 103 da PANAM já não há amigos nem inimigos, talvez haja apenas clientes.

sábado, agosto 15

Painéis, Paglia, Palin

Está quente o debate nos EEUU sobre a proposta de lei da administração Obama para reformar o serviço nacional de saúde. Uma onda de protestos e contra-protestos percorre o país, mobilizando activistas republicanos, democratas e organizações sindicais, com focos de pancadaria ocasionais e acusações mútuas de "vocês são nazis". A Casa Branca cria um site em que apela à e-denuncia dos detractores da campanha. Tudo muito simplex. A popularidade do Presidente acaba por se ressentir do caso: até apoiantes de Obama manifestam receios e dúvidas.

Certamente não é por nada que Camille Paglia publicou há 3 dias um artigo intitulado "Obama's healthcare horror". A tentativa de fazer passar rapidamente uma lei controversa, com centenas e centenas de páginas, que o cidadão comum só conhece em versão de sound-bytes, é naturalmente motivo de preocupações e censura por quem pensa pela própria cabeça. Paglia pede mesmo que outras comecem a rolar: ela, que certamente não estará só a pensar assim, atribui o caos em que a iniciativa se encontra à incompetência da equipa do Presidente. Provavelmente será preciso esperar por muitas mais gaffes para que até os apoiantes se convençam de que Obama faz o que faz por vontade própria. A mesma vontade com que escolheu os seus conselheiros.

A actuação de Obama e sua equipa na reforma da saúde veio proporcionar a Sarah Palin um ensejo de prova de vida e grande projecção. Parece que Sarah acredita, entre outras coisas e para gozo de muitos, que os dinossauros coexistiram com o Homo Sapiens, mas o que neste momento importa aos americanos (e sobretudo aos "unamerican", mimo com que os descontentes têm sido brindados pelos conselheiros presidenciais) é que Sarah descobriu a existência de "painéis de morte", escondidos na lei de Obama, mas com o rabo de fora. Chamem-lhe parva. A designação inventada por Sarah causou escândalo, obrigou os responsáveis mais directos pela lei a virem dar explicações e, cereja em cima do bolo, levou uma comissão do Senado a retirar da lei as "end-of-life provisions". Para algo que diziam não existir e ser invenção da Palin, nada mau.

Há obviamente um risco cultural em jogo, que seria o de alguém acabar por convencer os americanos de que os dinossauros foram realmente nossos contemporâneos e, sabe-se lá, que existam ainda para aí nalguma reserva. Mas temos que reconhecer com honestidade que Sarah não se tem aproveitado da situação.

POST SCRIPTUM a propósito da reforma do sistema de saúde nos EEUU: Das grandes intenções à dura realidade. Em 2008, Obama propunha-se enfrentar a indústria farmacêutica com o recurso a genéricos e a medicamentos comprados fora dos EEUU. Uma discreta notícia do New York Times, de 5 de Agosto, revela que a Casa Branca já garantiu ao lobby dos fabricantes de medicamentos que os seus prejuízos serão limitados. A administração Obama puxa assim para o seu lado um importante lobby que agradecidamente colaborará na publicidade da nova lei.

quarta-feira, agosto 12

Ventos e nuvens sobre a América do Sul

Hugo Chávez quer mais do que pode. Voltou a enviar o seu embaixador para a Colômbia. A produção de café, produto de relevo na economia do país, está em forte queda devido à fixação administrativa de preços e obriga o estado a tomar conta de grandes companhias produtoras. A escalada de controlo dos meios de comunicação encontrou pela frente a oposição da Assembleia Nacional, que não autorizou para já a legislação que a procuradora geral queria ver aprovada. Estudantes e professores protestam contra a lei da educação de Hugo Chávez. Correa inicia o seu segundo mandato no Ecuador com o apoio popular já em queda. O apoio inicial da administração dos EEUU a Zelaya tem-se discretamente esfumado; restam palavras mas não há sanções. Ainda há menos de uma semana Zelaya foi praticamente empurrado para fora do México depois de uma visita sem glória. O insuspeito Los Angeles Times publica um editorial onde o golpe nas Honduras é encarado de um ponto de vista desculpante e compreensivo. Entretanto, em Tegucigalpa é decretado recolher obrigatório depois de distúrbios violentos.

De tudo isto se fala nos jornais. Mas há histórias que podem não vir a ser contadas, como a curiosa compra de uma companhia de navegação venezuelana, através de um banco falido, pela Telefonica espanhola, que terá ocorrido em data próxima da recente visita do ministro Moratinos à Venezuela. (A visita em que Moratinos disse que a liberdade de expressão no país é satisfatória.) Está tudo contado no Gringo com pormenores abundantes, e se for ficção merece um prémio porque, como é sabido, a realidade costuma ser mais rica e surpreendente.

domingo, agosto 9

Fat Man

Às 10.58 de 9 de Agosto de 1945, esta antiquada bomba seria lançada sobre Nagasaki. O alvo inicial, Kokura, escapou graças ao mau tempo. Estimativa do número de mortos imediatamente a seguir à explosão: 40000. Quase tantos como os que resultaram do bombardeamento de Tokyo uns meses antes. Hiroshima e Nagasaki são tragédias de enorme impacto e significativamente mais importantes em danos psicológicos do que as que resultaram de bombardeamentos convencionais. A espectacularidade da nova arma quase faz esquecer o papel decisivo dessa outra terrível inovação tecnológica, o B-29, o bombardeiro que operou a derrota do Japão.

sábado, agosto 8

Não beijes, não dês a mão, diz olá

Conselho do Colégio dos Médicos de Madrid para evitar o contágio da Gripe A. Melhor que lavar as mãos (o que não se consegue a toda a hora) é parar de beijocar por tudo e por nada e abster-se de mexer em quem mal se conhece. (No PÚBLICO de aqui ao lado.)

sexta-feira, agosto 7

A declínio do PhD

Caroline Tagg está de parabéns. Depois de estudar 11000 SMS de familiares e amigos, saiu-lhe um PhD na Universidade de Birmingham, com a tese intitulada "A Corpus Linguistics Study of SMS Text Messaging". Nas declarações que faz ao Telegraph podemos encontrar algumas das suas descobertas fascinantes e inesperadas, comprovando que a ciência tende a contrariar o senso comum:

-as mensagens de texto estão muito mais próximas da língua falada do que a escrita formal; constituem uma nova forma de comunicação intermediária entre aquelas duas.

-escreve-se SMS como se se estivesse a falar, e usam-se palavras desnecessárias e abreviações gramaticais.

-escrever SMS revela um grande domínio do funcionamento da língua: os escreventes de SMS revelam uma grande habilidade para abreviar e sabem que retirar as vogais deixa o significado das palavras intacto, o que não sucederia com as consoantes.

-o texto de SMS manipula as palavras com humor e usa metáforas.

A orientadora da dissertação, Professora Susan Hunston, afirma que não sabe escrever em SMSês. O que só vem mostrar que o assunto é coisa muito séria e exige erudição invulgar. Xpero k ao menox ox membrox do juri k aprexiaram a texe tivexem dentru do axuntu.

quinta-feira, agosto 6

Não é neutro, não

Vem aí a edição de 2009 da Festa do Avante. A Ciência vai estar na Festa, indo neste ano Darwin o destaque para a evolução da vida na Terra, sob o lema «da vida no universo ao universo da vida». Haverá uma exposição que abarca os últimos 65 milhões de anos e que ilustra a evolução dos primatas até ao Homo Sapiens; haverá também espaço para a observação experimental.

Mas o conhecimento não é neutro e a exposição é política de ponta a ponta. Daí, diz a organização, a atenção dada à Idade Média e [a] um bocadinho do Renascimento, períodos nos quais a defesa de uma abordagem evolucionista podia valer a fogueira; a seguir tratamos da revolução francesa e do Lamarck, depois do Darwin, que nasce entre duas grandes revoluções, a francesa e a industrial, e que por isso tem todo o seu pensamento influenciado pela época em que nasce.

Continuando a ler a informação do site, não se encontram outras referências à atribulada relação das ideias evolucionistas com os acidentes históricos. Talvez a organização atravesse uma fase de negação com respeito à URSS. Não se vê outro motivo para esquecer fogueiras bem mais recentes, sobre as quais nem um século ainda passou. É falha imperdoável que, numa exposição tão dada ao que é político, onde Darwin e Lamarck são figuras de referência, esteja ausente a figura de T. D. Lysenko - o homem que quis forçar as leis da natureza a estar de acordo com a ideologia do regime estalinista, e graças a cuja acção muitos cientistas foram demitidos ou simplesmente desapareceram. Que melhor lição sobre as relações entre política e ciência do que essa curiosa e sinistra perversão, nada materialista, que arruinou durante anos a agricultura soviética? Estou convencido de que, apesar de não estar no site, vai estar na Quinta da Atalaia nos primeiros dias de Setembro.

quarta-feira, agosto 5

Marilyn


1 de Junho 1926 - 5 de Agosto 1962

Resgates

O presidente Clinton regressou de Pyongyang com as duas reféns americanas. Vitória da diplomacia americana? O tempo o dirá, mas não maior que a de Kim Jong-il, esse homenzinho maroto que quis Bill e teve-o lá. Para o consumo externo e interno que der e vier. Há até quem diga que Bill transmitiu verbalmente a Kim um pedido de desculpas de Obama, embora pouco se saiba de que temas se falou durante o jantar de estado oferecido a Clinton.

Há obviamente aqui um resgate, se não com um cheque, pelo menos em géneros. Chantagem de estado é uma das especialidades de governos como o da Coreia do Norte. O que faz lembrar, em contraponto, a actuação bem mais materialista de Kadhafi.

Em 1988 um acto terrorista fez explodir sobre Lockerbie um avião da Pan Am, causando a morte dos 270 ocupantes. Depois de longas negociações, a Líbia acabou por reconhecer a responsabilidade no acto criminosso, tendo acordado em 2003 pagar entre 5 e 10 milhões de dólares a cada uma das famílias das vítimas. Não sei o que efectivamente foi pago, mas um facto de que ainda a semana passada se voltou a falar mostra que Kadhafi trabalhou bem para recuperar parte do rombo. À custa das enfermeiras búlgaras feitas reféns e libertadas em 2007, a Líbia pode ter recebido 72 milhões de dólares. Pelo menos o actual primeiro ministro búlgaro acusa o seu antecessor de ter pago esse resgate. É sem dúvida um típico episódio de luta política interna, mas o que se disse sobre o assunto e o que sabe das personagens não deixa muitas dúvidas de que uns milhões pingaram para a Líbia. O caso teve ainda como efeito colateral o relançamento de Kadhafi numa tournée europeia de "charme", se é que esta palavra se pode aplicar à grotesca criatura. A quem não convém lembrar tudo isto, também se sabe. Nicolas Sarkozy, que ao tempo ainda amava Cécile e não Carla, detinha oficialmente os louros da libertação, supostamente após uma difícil diplomacia, e com foto da primeira dama ao lado dos resgatados do inferno líbio.

terça-feira, agosto 4

A queda das ciências tontas

O artigo está a caminho de fazer um ano mas vale a pena lê-lo. Encontra-se no Gene Expression. Trata da decadência de determinados conceitos que surgiram nas teorias académicas mais ligadas às ciências sociais. A partir dos arquivos bibligráficos do JSTOR e procurando a ocorrência de palavras-chave relacionadas com modas "científicas" relativamente recentes, o autor (agnostic) constrói gráficos que revelam a ascenção e declínio de conceitos entre os quais: construção social, psicanálise, pós-moderno, pós-colonialismo, orientalismo, marxismo, feminismo, desconstrução. De um modo geral, observa-se a partir dos anos 90 uma queda nas ocorrências. O autor observa alguns factos interessantes:

-embora feminismo e marxismo sejam muito mais velhos que o resto, o declínio dá-se aproximadamente na mesma altura, como se uma lufada de ar fresco tivesse vindo varrer o lixo.

-a interacção entre crentes em determinada teoria, e não crentes, pode ter efeitos muito limitados: apesar de muito se ter escrito contra o pós-modernismo e o marxismo, os danos causados nas fileiras dos crentes são moderados, tendo a queda do pós-modernismo sido suave mesmo depois de o caso Sokal ter posto a nu a tolice do assunto.

-as novas gerações são menos susceptíveis de serem influenciadas pelas teorias tontas. Diz o autor (então com 27 anos) que mais valia conversar com gente na casa dos 20 do que socializar com os da sua idade: a expectativa de ter uma discussão inteligente com estes revelava-se frustrante por causa das crenças com que já estavam infectados.

(agnostic, que não brinca em serviço, iniciou um novo blog, Patterns in science and culture. Os artigos requerem muito tempo e trabalho e por isso o acesso será pago. Por 10 dólares será permitido o acesso a 20 artigos de fundo. )

Os homens não se querem bonitos (no Afegnanistão)?

Os Taliban, em campanha contra as eleições do próximo dia 20, estão a deixar avisos ao povo afegão através de "cartas nocturnas", conta a Reuters. Possuir no telemóvel imagens de mulheres que não são da família ou de rapazes bonitos é contra a dignidade exigida pela religião islâmica. A própria posse de telemóvel com funções de imagem e video não é bem vista.

À primeira vista, passado o óbvio conservadorismo de proibir fotos de mulheres "fora da família", poderia parecer despontar aqui um sinal de superioridade moral do Islão, ao dar oportunidades competitivas aos rapazes de feição grosseira, barrigudos ou de peitorais descaídos. Mas, se a notícia é correcta, notando que para as mulheres o problema nem sequer é posto, facilmente concluimos que das duas duas: o Islão é empedernidamente discriminador das mulheres e os Taliban são afinal umas bichas encapotadas.

domingo, agosto 2

"O Convite"

Não é novidade, nas obras de ficção, a substituição do narrador omnisciente pelo puzzle caleidoscópico dos múltiplos pontos de vista das personagens. Desde a novela epistolar do século 18 até à obra prima de Vargas Llosa "Conversa na Catedral", passando pelas jeunes mariées de Balzac, pelo Drácula de Stoker, pelo Tempo de Proust e pelo muito popular mas datado Quarteto de Alexandria, deu-nos a literatura obras magníficas onde uma história é contada por acumulação de narrativas que se reflectem e ampliam, adicionando camadas de luz sobre os factos, que ora se sobrepõem, ora se contradizem.

Nas formas mais populares de entretenimento (cinema e novelas da tv) o género não tem sido explorado. É necessário chegarmos ao século 21 e à decadência da qualidade da acção política em Tugal, ou mais geralmente, ao desempenho medíocre dos actores e candidatos a actores em órgãos de soberania, para assistirmos ao despontar de um novo género ficcional que vai entroncar naquela nobre tradição literária. Não é literatura nem é novela de tv: à multiplicidade de ângulos de visão junta-se nesta nova forma de contar histórias a variedade de meios que veiculam o conteúdo. Pode tratar-se de jornais, televisão, rádio ou blogs.

É claro que o novo género está a dar os primeiros passos, mas os resultados são pouco entusiasmantes. Veja-se o caso da última produção - "O Convite". O enredo, construído em torno de 4 ou 5 personagens, conta-se em duas linhas, e nem vale a pena resumi-lo aqui porque os meus 10 leitores já o sabem de cor. O que é certo é que os diálogos são de uma pobreza alarmante. Por exemplo, a personagem feminina principal diz "é uma pessoa que só vi uma vez na vida, mas... não há condições para eu aceitar", referindo-se a um dos personagens masculinos, o qual retorque "Telefonou-me depois e disse-me que tinha reflectido e não estava interessada e por isso nem fiz participação desta conversa a ninguém". Outro diz: "É muito feio fugir ao rigor dos factos". Isto é pior do que os sripts de novelas da TVI, com tiradas do tipo "Zulmira, eu tenho que ter uma conversa muito séria contigo", ou "Pois fica a saber que se continuas a rondar o Renato vais sofrer as consequências".

Há em "O Convite" a agravante de não se passar nada, o que tornaria a produção mais adequada a um festival de arte e ensaio do que ao consumo de massas, mas para isso teria de estar muitos furos acima na caracterização e espessura das personagens, as quais se limitam a desmentir-se umas às outras. É afinal uma reposição, para pior, da técnica já usada numa novela anterior, "Free Report", que se manteve em exibição até há pouco tempo, mas em que, apesar de tudo, transpirava alguma acção.

O elemento novo e subtil nesta emergente forma de entretenimento é que as personagens julgam-se dotadas de vida própria, pensam existir fora do plano ficcional. Mal uma diz uma deixa logo outra aparece a reagir, ignorando que debita um guião de baixo nível. Infelizmente, não passam de imitações baratas dos caracteres da Rosa Púrpura de Woody Allen. Os media colaboram, não distinguindo a ficção das notícias.