domingo, novembro 22

Histórias de encantar



Porque gostamos de ler ou de que nos contem histórias? Talvez, como diz Vargas Llosa, porque "queremos viver outra vida diferente da que nos calhou". Com todas as histórias já mais que contadas, recontadas e requentadas, é um prazer redescobrir a arte e o engenho de inventar os enredos que são, na sua essência, os que não deixaram de ser reproduzidos e de nos apaixonar ao longo de séculos.

Os Contos e Novelas de Marguerite de Navarre são uma joia da literatura no seu sentido mais puro e autêntico: o texto é encantatório e as histórias absorventes, a ponto de nos afligir a aproximação do fim. O que vale é que são muitas, espécie de mil-e-uma-noites em que a Scherazade se chama Parlemente e debita os contos sem ter a cabeça em jogo.

Os episódios são numerados e cada título é uma pequena sinopse do enredo, como:

XXXVI. Um presidente de Grenoble, alertado para as prevaricações da sua mulher, actuou tão sabiamente que delas se vingou sem que a sua honra fosse atingida em público.

XLVI. De um frade que dizia que o marido cometia um grande crime ao bater na mulher.

LIX. Um fidalgo é surpreendido pela mulher quando julgava estar a beijar uma das criadas.

LXVIII. Uma mulher dá de comer ao marido pó de cantáridas para dele receber amor e pensou que ele rebentava.

LXX. Horrível impudicícia de uma duquesa foi a causa da sua morte. e da de duas outras pessoas que se amavam na perfeição.

Na Septuagésima Novela, a duquesa de Borgonha, cuja beleza satisfazia o marido de tal maneira que ele "não cuidava senão de a ter contente", é acometida de uma louca paixão por um jovem servidor do duque. Depois de tentar seduzi-lo sem êxito, vinga-se acusando-o ao marido de assédio. O duque, que tinha grande estima pelo jovem, recusa-se a acreditar. A mulher convence-o, fazendo notar que ao rapaz não se conhecia namorada. O duque quer então saber mais, e o jovem acaba por lhe confessar, implorando segredo, que é amante da senhora de Vergy, sobrinha do seu amo e viúva, que não podia aspirar ter por esposa. Para provar que não mente, o rapaz conduz o duque até ao sítio onde se encontra com a namorada. O sinal de que o caminho estava livre era dado pelo latir de um cãozinho que ela deixava no jardim. O duque fica satisfeito e regressa tranquilo a casa, dizendo à mulher que afinal o rapaz tem um compromisso. A duquesa, ferida no seu amor não correspondido, quer saber com quem; estando grávida, ameaça perder a criança se o marido não lhe contar a verdade, e este cede. Dias depois há festa no palácio e a duquesa aproxima-se da senhora de Vergy, a quem pergunta com o coração trespassado de ciume:
"E tu, bela sobrinha, como é possível que a tua beleza permaneça sem amigo ou servidor?"
"Senhora, respondeeu-lhe a rapariga, a minha beleza nada me trouxe depois da morte do meu marido porque nenhum outro homem eu quis para além dos filhos que me deixou, com os quais vivo feliz."
"Linda sobrinha, linda sobrinha, respondeu-lhe a duquesa com execrável desdém, não há amor secreto que não venha à luz, nem cãozinho bem tratado de que não se escutem os latidos."
Depois é tudo rápido: a senhora de Vergy sente-se traída, imaginando que o segredo só poderia ter transpirado para outra amante do rapaz, e morre de amor ferido depois de um monólogo de duas páginas e meia onde descreve o detalhe da sua dor excruciante. O rapaz vai procurá-la e uma aia que assistira à cena reproduz-lhe as palavras da moribunda; o jovem não suporta a culpa e trespassa o coração com a espada depois de outro monólogo de duas páginas. O duque, posto ao corrente dos factos, percebendo que a tragédia fora causada pela perfídia da mulher, acaba por degolá-la e mandar construir uma abadia para se remir do pecado. Depois "empreendeu uma viagem contra os Turcos, em que Deus o favoreceu tanto que de lá trouxe honra e proveito, tendo recolhido à abadia onde estavam sepultados a mulher e os dois amantes, lá tendo passado a velhice em paz com Deus".

As personagens não têm nomes mas são incrivelmente próximas de nós. A diferença é que quando dizem que vão morrer de amor morrem de facto, não sem antes declamarem em sofisticada prosa as razões da sua angústia e de o mundo se lhes ter tornado um lugar inabitável.

2 comentários:

on disse...

Que falta de falta de tempo:)
Dois posts no mesmo dia?
Chegou a altura de mudar o nome ao blog?

lino disse...

Isso nunca! Se mudasse o nome poria em risco a reputação de site conservador. :)