segunda-feira, março 29

As palavras em queda

Já que se falou no poder das palavras, é interessante assistir também à sua queda em desgraça. O Science Museum rebaptiza a exposição sobre "ciência do clima" e redefine o seu conteúdo. De um posicionamento em forma de câmara de sustos e horrores, passa a assumir uma atitude mais neutra.

Quanto tempo demorará a chegar às escolas e às universidades a mesma contenção?

domingo, março 28

Neolíngua

A Local Government Association publicou a lista de 250 neo-palavras (algumas não tão neo) que devem ser banidas da comunicação com a população por parte das entidades do sector público. A ideia é que o destino dado aos impostos deve ser explicado aos contribuintes em inglês. Segue uma amostra de vocábulos desaconselhados:


Core principles
Sustainable
Output
Outsourced
Overarching
Synergies
Paradigm
Parameter
Democratic legitimacy
Indicators
Partnership
Multidisciplinary
Transparency
Proactive
Social contracts
Value-added
Social exclusion
Subsidiarity

Imagina-se a dificuldade em construir comunicados, relatórios ou discursos sem estas muletas. Tal como, aqui entre nós, em relação a expressões como

investir na qualificação
inserção profissional
conhecimento global
aposta nas novas tecnologias
redes tecnológicas de nova geração
energias renováveis
responder àquilo que são os desafios
reforço da estabilidade política
plataforma programática
reduzir as desigualdades
relançar a economia e promover o emprego
consolidar uma trajectória de crescimento sustentado
investimento público modernizador
linhas prioritárias de alta velocidade
diálogo social estruturado e consequente
rigor no controlo da despesa

As neo-expressões têm um valor inestimável para os seus usuários. Elas constroem significado de duvidoso conteúdo. Menos de metade do auditório descodifica-as, com ou sem aprovação, e os outros ficam consolados porque alguém compreendeu ou julgou compreender.

terça-feira, março 23

Tudo está bem se acabar bem

Em matéria de permissividade no cinema, a Malásia já chegou aos anos 30. Do século XX, é bom que se entenda. De facto, agora são permitidas nos filmes personagens gays, sob a condição de que no final se arrependam e se transformem em virtuosos heteros. Embora beijos e apalpadelas continuem rigorosamente proibidos para todos os sexos, isto representa um passo gigantesco em termos de abrandamento da censura islâmica: a medida não impõe, por exemplo, que as personagens homo acabem sepultadas sob um muro, nem sequer que pelo meio tenham que pagar multas e ser chicoteadas. O que é essencial é que o filme plasme a vitória do bem sobre o mal . Por exemplo, o cinema passa a poder mostrar também corridas ilegais desde que os prevaricadores sejam apanhados ou morram no fim.

Parece apesar de tudo que os autores de scripts para filmes ficam limitados a um modelo rígido. Se num filme um acelera ilegal se tornar gay antes de crashar, a censura deixará passar?

Por outro lado a ideia tem potencialidades para ser adaptada ao cinema ocidental contemporâneo. Por exemplo, talvez possamos voltar a ver num filme de Hollywood gajas e gajos que puxam descomplexadamente pelo seu cigarro e dão umas baforadas fotogénicas, desde que no final acabem todos encharcados em Champix. E, nas séries juvenis das tvis, miúdas e miúdos gordos e feios (se é que ainda há - pelo menos na televisão não passam), com a condição de no epílogo serem salvos por uma equipa de nutricionistas e cirurgiões de estética.

Wash, rinse and spin



Enquanto a recessão continua em todo o mundo, são filmes como este que levarão as audiências à empatia com os sem emprego e a compreender a sua condição. Assim se refere Greg Sanderson, da BBC, ao filme de Frederico Teixeira de Sampayo que ganhou o concurso MyWorld do World Service. Demasiado optimista: a suavidade e o esquematismo da metáfora não encaixam na enormidade do drama.

domingo, março 14

Paris em 26 gigapixels



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Alicia Gámez

O nome de Alicia Gámez aparece nas notícias dos últimos dias. Para lá do drama pessoal do cativeiro desta e de outros sequestrados, o contexto é particularmente fascinante pela banalização do encobrimento da verdade e consequente impossibilidade prática de virmos algum dia a conhecê-la. Resta-nos, espectadores das mentiras ditas ou escritas, nos casos em que versões discordantes podem equivaler-se em versosimilhança, tomar partido por fé ou convicção ideológica.

Dizia o El País que, segundo os raptores, intitulados Al-Qaeda no Magrebe, a libertação de Alícia (agora irmã Aicha) se deveu ao seu estado de saúde e à sua conversão voluntária ao Islão. Mas o médico que a examinou no dia da libertação encontrou-a bem. O artigo do jornal não faz qualquer comentário sobre a conversão mas ele merece no mínimo dois. Primeiro, depois de cem dias de cativeiro, é tão verosímil uma livre conversão ao Islão como que o terramoto do Haiti seja uma manobra militar dos Estados Unidos. Depois, há esse outro aspecto interessante - e humilhante para Espanha - de o tempo da libertação coincidir com o aniversário do 11 de Março. Para além da mensagem do grupo terrorista ao povo espanhol, é credível num primeiro momento que lhes interessasse assinalar a data. Mas nem tudo joga tão certo. Apesar de não ser reconhecido pelo governo espanhol, fala-se do pagamento de resgate, um punhado de milhões de dólares. E por outro lado o comunicado AlQaedino afirma "Los detenidos en España [na sequência do 11 de Março] acusados de terrorismo, de los que se dice que están vinculados a nosotros, son personas inocentes, que no tienen ninguna relación con nosotros, ni de cerca, ni de lejos". Pelo menos por mera prudência intelectual, temos de conceder um lugar à hipótese de se tratar de um bando delinquente que vive de resgates, restando na esfera do impenetrável se a libertação naquela data foi imposição dos raptores, porque certamente quem paga tenta negociar as melhores condições. A quem interessa, afinal, a bofetada de assinalar o 11 de Março (que o Congreso acaba de tentar apagar, transferindo a homenagem às vítimas de terrorismo para 27 de Junho)? Os mistérios que persistem após o julgamento do 11 de Março são muitos e levam-nos a terreno onde nada é óbvio. Mesmo do lado do PP (supostamente o partido mais prejudicado com o acto e a gestão subsequente do processo) as vozes que polida e discretamente, na net, falam em "verdade jurídica" não explicam porque é que nunca, na assembleia de deputados, levantaram qualquer questão ou pediram algum esclarecimento. A questão do Goma-2 pode ficar para um futuro thriller, provavelmente com dois ou três finais diferentes.