sábado, junho 30

O juiz Roberts no labirinto das palavras

Na passada 5ª feira, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos aprovou a lei que reforma o sistema de saúde  É sem dúvida uma vitória de Obama, mesmo que por linhas tortas. Ou talvez o adjectivo torturadas seja mais apropriado. A decisão do Supremo e a sua fundamentação não param de ser comentadas. Vão dar, por muito tempo, alimento à militância pró ou contra e à exegese jurídica. Assim à primeira vista, o juiz Roberts transformou uma multa num imposto, mas fez mais: lançou a dúvida sobre a natureza da coisa ao mesmo tempo que abriu as portas a que se saiba o que realmente é: o que só pode acontecer com a entrada em vigor, já que ninguém tem vida para ler as mais de 2000 páginas que estão por trás. Porque agiu assim o juiz conservador? perguntam-se, furiosos, muitos detractores da lei ou lá o que é. Ora, porque pode ter pensado que passar a coisa é o melhor para os americanos, que apesar de tudo fazem escolhas nas eleições.

sábado, junho 23

Computers


Passa hoje o centenário de Alan Turing. É por isso apropriado lembrar que antes de Turing dar os passos decisivos para a criação do computador, já havia computadores. Bem... a palavra tinha então outro sentido: os computers eram pessoas com boa prestação em matemática que trabalhavam em equipas encarregadas dos extensos cálculos necessários na ciência e nas suas aplicações.

Nem todos os cientistas se sentem muito confortáveis com o cálculo extenso e complexo. No passado, a produção épica de registos astronómicos de Tycho Brahe permitiu a Kepler, um calculador exímio, estabelecer as leis do movimento dos planetas; a tenacidade de Alexis Clairaut resolveu a órbita do cometa Hayley, causando admiração dos seus contemporâneos. Clairaut organizou a tarefa dividindo o trabalho com dois colaboradores, o astrónomo Joseph Jerome Lalande e a mulher de um relojoeiro, Reiebe Lepaurte.

O poder saido da Revolução, em França, promoveu a criação de equipas de computadores para elaborarem tábuas trigonométricas e de logaritmos.

As equipas de calculadores que foram surgindo trabalhavam por vezes em regime militar, como no caso dos "Boy Computers", um grupo de rapazes que o English Royal Observatory encarregou de produzir cálculos para uso em astronomia e na navegação.

Sala de computadoras da NASA, 1949

A divisão de trabalho permitiu utilizar como computadores pessoas com fracos conhecimentos de aritmética. assim se deu trabalho a desempregados durante o New Deal. Mas com a segunda guerra mundial e a necessidade de resultados fiáveis aumentou a procura de computadores competentes. Destes, muitos eram mulheres. Calculavam dias a fio em regime de subdivisão de tarefas. (Informações mais detalhadas neste artigo de Dr. Phil.)

A profissão de computador desapareceu com a forte automatização do cálculo a partir de meados do século 20. No entanto, longas tabelas de integrais e soluções exactas de equações diferenciais foram executadas por pessoas vivas até há relativamente pouco tempo, antes do aparecimento de software capaz de manipulação simbólica.

Quando Turing escreveu "The behaviour of the computer at any moment is determined by the symbols which he is observing, and his 'state of mind' at that moment" estava a referir-se a gente, não a máquinas. O filósofo Daniel Dannet faz neste artigo do The Atlantic uma aproximação de Turing a Darwin, afirmando que ambos mostraram que se pode ser competente sem perceber nada do assunto. A provocação é interessante e presta-se a glosas humorísticas, mas os pedagogos - modernos ou conservadores - não gostarão da ideia.

domingo, junho 17

Lenta lucidez

José Luis Rodriguez Zapatero deu uma entrevista à Al Jazeera. Para lá de umas considerações genéricas de como salvar o o euro, a Europa e mesmo o mundo, o ex-PM reflectiu sobre o passado próximo. Disse ele: "Se tivéssemos poupado mais e pedido emprestado menos ao exterior, teríamos sofrido menos." Claro que "poupado mais" é um eufemismo exculpatório para "esturricado menos". E lamentou que se tenha investido "mais do que se ganhou".
Em todo o caso, face a esta auto-crítica, julgo provável que José Luiz esteja agora a estudar economia.

Encruzilhadas do eu

Parece, de acordo com este artigo, que a personalidade extravagante de Howard Hughes esteve na origem da investigação que levou Bruce Hood à teoria que expõe em The Self Illusion. A brincar, podemos dizer que chegámos ao paradigma trans-pós-moderno, quando se sustenta que o eu não passa de uma história, uma narrativa construida. Parece líquido também, de acordo com comentários à entrevista conduzida por Jonah Lehrer, que aos budistas esta versão do eu agrada muito e que no essencial eles já sabiam tudo. Enquanto aguardamos que os especialistas façam progressos na explicação do que realmente somos, se é que a questão sequer faz sentido, lá teremos de ir vivendo as nossas vidas, perdão, histórias.

sábado, junho 2

Há morte para além da vida?

A pretexto do livro Imortality de Stephen Cave, Ronald Bailey passa em revista as narrativas mais comuns da imortalidade: prolongamento da vida, ressurreição, alma e continuação pela fama ou descendência. Declara que nenhuma se aproveita e tenta consolar-nos do medo da morte, do não ser, com a perspectiva assustadora do que seria a vida eterna. Mas ao citar Epicuro nem se apercebe de que pode estar a deixar-nos ainda mais aterrados: se não podemos aperceber-nos do momento em que passámos a não ser, talvez a vida, vista por cada um, seja realmente eterna...

A natureza arrepiante do tema é cortada pelo bom humor dos comentários ao artigo.

De Modena


O terramoto faz agora parte de todas as conversas, e pressente-se quando toca um telefone. Hoje, um catedrático do Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Modena e Reggio Emilia garante que a situação tende a estabilizar-se, não havendo, no entanto, certezas absolutas, apenas probabilidades. Quase todas as igrejas da cidade estão fechadas e alguns actos de culto anunciam-se para o ar livre. Há ruas interditas a peões, prescrutam-se as paredes antes de entrar nas ruas estreitas do centro, descobrem-se rachas que podem não ser novas, e dono de cão ou gato vê com apreensão qualquer comportamento do bicho que lhe pareça inabitual. Nas povoações próximas mais atingidas continua a viver-se uma situação difícil. Em Roverino, oito famílias assistiram ao desmoronar do prédio onde viviam: danificado e interdito, caiu como um baralho de cartas três dias depois do abalo que lhe deu o golpe. Agora pensam em processar a construtora, a quem tinham pago 200 milhões de liras pelos apartamentozitos, vendidos como muito sólidos, em 1993. O desmoronamento veio pôr a nu que as garagens não estavam construidas em cimento armado, mas sim com tijolo perfurado.

Entretanto, nem só a instabilidade do solo faz as coisas mudar para pior. Na livraria Feltrinelli, razoavelmente bem fornecida, as empregadas são agora pouco simpáticas, não parecendo nada interessadas em dar uma ajuda ao cliente. À entrada há saldo de cd's: a pop a 6€ e a clássica a 12. Quem vende sabe bem que Bach, Beethoven e Mozart valem a dúzia de euros. Mas quem é que os daria pelos Moody Blues ou mesmo pelas Songs from a Room do Cohen? Nem toda a "cultura" vale o mesmo. A pop é etiqueta de uma pose e de uma data. Com o passar do tempo, esvai-se o ténue significado que carrega.