segunda-feira, agosto 29

Cada macaco no seu galho

Por ter referido os anos 70 no post anterior, veio-me à memória um detalhe, que ainda me faz sorrir, dessa época que já parece tão longe.

No princípio dos anos 70 começaram a aparecer entre nós os grupos de teatro que queriam romper com as formas clássicas de actuação. A sua bandeira era estética e política. O aspecto anedótico a que quero referir-me é que começou a ser moda provocar a intervenção do espectador na representação. Este desígnio estava em consonância com teorias da arte de acordo com as quais todos têm capacidades que vale a pena mostrar e, em última análise, tudo é arte. Lembro-me de ter contactado com o fenómeno pela primeira vez num teatrinho dos arredores de Lisboa: às tantas os actores ficaram imóveis, deitados no palco, à espera de um estímulo vindo da plateia para continuarem (não me lembro como se desbloqueou a situação). Anos mais tarde, num espectáculo no Chapitô, a que pensava que ia assistir descansado, obrigaram-me volta e meia a levantar-me e agitar um lençol, em conjunto com outros espectadores, para simulação de ondas numa cena que se passava num barco. Noutros casos, cheguei a ser chamado ao palco para fazer já não me lembro o quê.

Como não me dá tranquilidade saber que provavelmente sou chamado à acção quando o que quero é simplesmente ver um espectáculo, passei a perguntar, sempre que ia comprar um bilhete, se alguém iria pedir-me para fazer alguma coisa, caso em que a compra seria imediatamente anulada. Quando pago um bilhete, não é para trabalhar.

É provável que ainda haja vestígios daquela moda, mas tanto quanto me apercebo ela foi desaparecendo, ou pelo menos foi-se tornando menos frequente. No entanto, o princípio subjacente sobreviveu noutras formas: no jargão dos modernos pedagogos, por exemplo, o professor é apenas um facilitador da aprendizagem e, no limite, dentro da sala de aula todos aprendem e todos ensinam. (Também gostam muito, aliás, de falar dos actores do processo de ensino-barra-aprendizagem.) Trata-se, claramente, de uma confusão deliberada de papéis, como no teatrinho de vanguarda.

domingo, agosto 28

Imobilidades

Nos últimos dias voltou a estar em causa o valor da coerência, a propósito da lamentável carta aberta (no PÚBLICO) de Maria João Seixas a Helena Matos. Ainda há pouco tempo, tendo o falecimento de Cunhal em pano de fundo, se tinha falado desta escorregadia qualidade e ela não saiu muito bem tratada da discussão.
Não vejo nada de extraordinário no percurso de Helena Matos. Por um lado, todos nós, que já tivemos 20 anos, sabemos que por vezes nessa idade se adoptam resoluções e atitudes por mero impulso ou por razões de afectividade, mais consciente ou menos consciente. Por outro, a informação de que se dispunha nos agitados anos de 74 e 75 não era, apesar de tudo, a que temos hoje e um punhado de importantes lições da história ainda estavam por nos esmagar com as suas evidências. A multiplicidade de projectos políticos que explodiram à luz do dia no final da “longa noite fascista” também ajudava à confusão.
Com a experiência e a reflexão, as pessoas mudam, e ainda bem. Ainda bem, em particular, no caso de Helena Matos, certamente uma das mais interessantes e lúcidas autoras de crónicas na nossa imprensa. Ela está a prestar um serviço bem mais importante do que o que prestaria se, por imobilismo intelectual, se limitasse a engrossar a coluna dos discursos previsíveis, como MJS gostaria.

De resto, as mudanças ao longo da vida são comuns e naturais, e não apenas no campo das preferências políticas. Não mudar parece mais estranho do que mudar.

Por exemplo: por volta dos 10-12 anos, lê-se as aventuras dos “cinco”, na casa dos 20 ouve-se e goza-se com a música pop ou rock do tempo, mas com certeza que MJS não achará normal que se fique agarrado a esses gostos toda a vida. Eu sei que há muitos cinquentões que vão aos concertos dos Rolling Stones e que Harry Potter e o Senhor dos Anéis são as delícias literárias quase exclusivas de alguns adultos. Não será o caso de toda a gente, mas há quem fique com os seus gostos congelados e reduzidos aos padrões da adolescência tardia. A falta de amadurecimento e reflexão pode explicar alguma dificuldade em compreender e analisar alguns aspectos da nossa realidade e marcar negativamente as escolhas individuais de que depende o futuro colectivo.

sexta-feira, agosto 26

Dois pontos

O activismo de Cindy Sheenan está a revelar-se um embaraço significativo para Bush e para os defensores da invasão do Iraque. A constatação deste facto sugere duas reflexões. (Nenhuma delas tem a ver directamente com a situação no Iraque.)

Primeira: há um preconceito, não expresso, por detrás dos receios daqueles que colocam a posse de armamento de destruição maciça por parte dos EU, ou por parte de estados párias ou grupos terroristas, ao mesmo nível de perigosidade; alguém imagina um movimento de simpatizantes do Ocidente a ter uma tal expressão pública no Irão ou na coreia do Norte, por exemplo? A assimetria é demasiado evidente.

Segunda: o caso Sheenan é um exemplo de como a corrente mediática mainstream transmite a informação de forma superficial e parcial. Não há nada de estranho no facto de uma mãe chorar um filho, ou em nisso encontrar um impulso para o seu activismo político. Mas o caso é menos simples quando se aprofunda o curriculum da Sra. Sheenan. Por exemplo, em Abril, participando num meeting na Universidade de San Francisco,




Cindy Sheenan teceu fortes elogios a Lynne Stewart, defensora de terroristas. Lynne Stewart foi advogada do responsável pelo atentado ao WTC em 1993; foi recentemente condenada por conspiração e auxílio ao terrorismo e por passar mensagens do seu cliente, na prisão, para um grupo cúmplice no Egipto. Um colaborador de Stewart, igualmente condenado, trocava informações com a Al Qaeda. Os pormenores contados por Lee Kaplan aqui.

quinta-feira, agosto 25

Leituras de Agosto

Em Memórias de duas jovens casadas, que, sem ser do melhor Balzac, é uma novela epistolar notável, há uma passagem deliciosa em que Louise descreve o choque que sente ao verificar que, na grande cidade, não é alvo de atenção, apesar de ser uma rapariga bonita:

Finalmente vi Paris! (...) Eu ia bem vestida, com ar melancólico mas disposta a rir, rosto calmo sob um chapéu lindíssimo, braços cruzados. Não obtive o menor sorriso, nem um só rapaz se dignou parar, ninguém se voltou para olhar para mim, e no entanto a lentidão da carruagem estava em harmonia com a minha pose. (...) Um homem examinou demoradamente a carruagem sem me prestar atenção. Esse lisongeiro devia ser cocheiro. Enganei-me na avaliação dos meus trunfos: a beleza, esse privilégio raro que só Deus concede, é, pois, mais frequente em Paris do que eu pensava.

terça-feira, agosto 23

O outro lado do problema

Por muito grave que tenha sido a morte trágica de Jean Menezes aos disparos da polícia britânica, por muito que se imponha apurar a verdade dos factos até ao fim, não se correrá o risco, com os fortes ataques de que a polícia vem sendo alvo, de enfraquecer a luta contra o terrorismo? Afinal, no dia 7 de Julho, 56 cidadãos foram mortos por assassinos saídos da sombra, disfarçados de pessoas como nós.

Convém não esquecer.

domingo, agosto 21

Camille Paglia sobre arte, academia, multiculturalismo, política...

Escreveu livros e artigos sobre arte, literatura, feminismo e política. Professora na University of the Arts in Philadelphia. Excertos de declarações em entrevista por Robert Birnbaun, 3 de Agosto
* * *

Para responder à grande arte, as pessoas de esquerda têm de aprender sobre o impulso religioso. Eu respeito o misticismo e a dimensão espiritual, embora não acredite em Deus. E afirmo que o humanismo secular actual, ao denegrir a religião, é meramente reaccionário, corrupto, ou o que se queira.

Os artistas, as universidades, as escolas, têm a obrigação de trazer a arte para primeiro plano. Em vez de 30 anos a dizer mal da cultura ocidental...
Sou pelo multiculturalismo. Tem a ver com as grandes tradições artísticas, sejam chinesas, hindus, seja o que for que percorremos em termos históricos – valor, grandeza, qualidade. (...) A ideia de qualidade tem sido afastada da discussão sobre a arte nas nossas universidades porque “Bem, não passa de uma máscara da ideologia. Não existe valor. É tudo subjectivo. Para quem quer manter o próprio poder.” É este lixo que se ouve.

Estamos a ter pior escrita, pior arte. O estilo da web(…) absorve-se informação sem ler frases completas. Email, blog, tudo é rápido, rápido, rápido. Por isso a qualidade da lingaugem degenerou.

Compete aos professores repor o equilíbrio a favor da arte e é aí que a educação na América está a falhar. Há uma espécie de mentalidade boazinha, humanitária, estilo “Vamos à nossa quota, vamos ler o poema tal do Africano-Americano, o poema tal do Nativo Americano.” De qualidade não se fala. (...) A extrema direita quer proibir o que tem a ver com sexo – nus na história da pintura. A esquerda quer proibir o que tem a ver com religião.
A maior parte das pessoas que são humanistas seculares crêem que estão a proceder bem. Estamos a proceder bem e o nosso único inimigo é a extrema direita ancorada na Bíblia. A razão por que é esta a ameaça é que eles têm a Bíblia. A Bíblia é uma obra prima. A Bíblia é uma das maiores obras já produzidas. Quem tem a Bíblia tem uma preparação para a vida. Não só dispõe de uma visão espiritual, como também goza de satisfação artística. Na Bíblia está tudo. A esquerda o que tem? Tem muita atitude.

Os esquerdistas supostamente falam pelo povo. Na verdade desdenham do povo.

O ponto é que as pessoas não estão a votar contra os seus interesses. O seu interesse é o capitalismo. É esta a minha objecção. Comparando a experiência do século 20, o socialismo numa nação acaba por arrastar a estagnação económica e do impulso criativo. O capitalismo, apesar de todos os seus defeitos, apesar de ser Darwiniano, fabricou uma qualidade de vida elevada. E, esta é para mim a questão principal como feminista: foi o capitalismo que permitiu a emergência da mulher independente moderna, liberta pela primeira vez de pais, irmãos e maridos – uma mulher que se basta a si própria.

É preciso varrer toda esta droga pós-modernista e estruturalista que não produziu nada a não ser postos académicos, promoções e salários de sucesso. Esta ingenuidade da imprensa alternativa a respeito da academia. A ideia de que gente que balbucia trivialidades esquerdistas é de esquerda. Conheci gente dessa na universidade. São apenas materialistas grosseiros, ok?

Sobre a complexa situação no Iraque

Carta aberta aos intelectuais europeus de Brendan O'Leary, professor de Ciência Política na Universidade de Pennsylvania.

sábado, agosto 20

Breve memória da estação idiota




Falta de estudo: foi anunciado, já não me lembro bem quando, que o governo iria gastar uns euros para dotar cada português de correio electrónico (ce), a começar pelos funcionários públicos. Ora, além de os funcionários públicos já disporem, normalmente, de ce nos respectivos locais de trabalho, o governo deveria estar informado de que, assim como cada famíla tem, normalmente, 2 casas, 2 carros, 6 aparelhos de tv e 6 telemóveis, cada português tem uns 3 ou 4 endereços de ce, que funcionam bem e são gratuitos. Pelo contrário, acesso à internet barato é que não. Certamente que não foi feito um "estudo" conveniente da situação.

Excesso de estudo: através de um anúncio para recrutamento de pessoal docente, fiquei a saber que na Universidade de Évora são leccionadas disciplinas com os seguintes nomes: Alojamento e desenvolvimento turístico, Práticas de operadores turísticos e Teorias do Turismo.

A escola pública não veicula ideologia? A respeito de escola pública versus escola privada, trocaram-se argumentos (e também alguns insultos) no PÚBLICO, entre Mário Pinto e Vital Moreira. No artigo de Vital Moreira, publicado em 9 de Agosto, é referido o "impedimento... de o Estado programar o ensino público de acordo com quaisquer directivas filosóficas, ideológicas ou religiosas". Para o autor, este é "o grande argumento a favor da escola pública". Ora, se este considerando parece perfeitamente razoável em abstracto ele é origem de um tremendo equívoco quando se olha de perto a realidade que temos. Assim, julgo que a afirmação de que na escola pública "nem professores nem estudantes estão sujeitos a orientações nem a directivas ideológicas ou doutrinárias" é facilmente desmentida pelos factos.

Ao fazer esta observação não estou a pensar em matérias que podem ser fonte de polémica fácil, como certas disciplinas do âmbito das ciências humanas ou a educação sexual. Estou antes a pensar no ensino de uma disciplina que posso apreciar com bastante conhecimento de causa: a matemática. Basta examinar os programas oficiais, ou o modo como são concretizados em textos do ministério ou em alguns manuais disponíveis e utilizados nas escolas, para que identifiquemos traços de uma ideologia plasmada nas indicações metodológicas, que são mais desenvolvidas do que os póprios tópicos do programa e espartilhantes da liberdade e da iniciativa do professor. São exemplos: a recusa do domínio das técnicas de cálculo e da utilização da memória; a utilização de calculadoras em contextos onde isso não é recomendável; a ocultação deliberada de certas conexões lógicas entre matérias relacionadas, ferindo assim a essência da disciplina. As indicações são ricas em chavões como temas transversais, formas de organizar pensamento,desenvolvimento de atitudes e capacidades, construção de conceitos a partir da experiência de cada um, área de projecto...

À primeira vista, poderia julgarar-se que se trata de indicações recomendáveis por via de validação científica. Mas jamais foram exibidos estudos que suportassem tais escolhas. E seria surpreendente que eles existissem, pois o que mostra a realidade dos resultados de avaliações em anos recentes (com estas formulações de programas em vigor) estaria em profunda contradição com aqueles princípios. Por conseguinte, é de ideologia que se trata.

Quando um blog fecha para férias...




... só se pode concluir que blog é trabalho.