domingo, abril 5

Morte de um homem feliz

Manuel de Oliveira viveu uma vida interessante e feliz. Mestre de vários ofícios, com destaque para o de realizador de filmes, tirou o melhor partido das oportunidades e, seja porque fez filmes pouco convencionais ou porque caiu nas graças da crítica francesa e da indústria internacional dos festivais, ofereceu a Portugal um lugar, ainda que imaginário, no mapa do cinema mundial.

Gostei de bocados de filmes dele e cheguei a gostar de um filme inteiro. Por alturas do Quinto Império, não me apeteceu ficar até ao fim.

Oliveira é agora um curioso elemento de consensualidade, ao menos ao nível dos depoimentos em formato de epitáfio. Como com Amália ou Eusébio, mas num campo de acesso infinitamente mais restrito (o cinema que quase ninguém vê), o seu desaparecimento tornou imperioso que todos construissem a pequena frase de veneração. Sem falar já dos colegas e actores e de outras pessoas ligadas ao cinema aqui e em França, os altos representantes do estado fizeram a sua pronúncia (suponho que com grande parte da elite tuga a olhá-los com desprezo, por não serem pessoas cultas à altura do falecido; mas se não falassem seriam deprezados na mesma), acompanhados por representantes de partidos (oportunidade para vermos a Catarina em pose não irritada), dirigentes do ACP, da FPF, Comissão Episcopal, etc. Houve até um excêntrico (descrito num jornal como "investigador") que aproveitou para acenar à criação de uma disciplina de cinema nas escolas secundárias.

Tudo isto não tem mal nenhum, talvez pelo contrário, mas cria a ideia de que os portugueses são dados à extravagãncia em matéria de homenagens. Daí a podermos recear ausência de critério vai um passo. Com um tão abrangente e expressivo memorial, ficamos perplexos com este quadro, sabendo que Manuel de Oliveira realizou 7 longas metragens a partir de 2004. Mesmo que todos os  representantes parlamentares, bispos, corpos dirgentes do ACP ou da FPP tenham visto ao menos uma delas, é óbvio que aqueles que representam não estiveram em sintonia.

sexta-feira, abril 3

A desconfiança do escrevedor

José Sócrates construiu a sua própria personagem, a começar pelo nick em que o nome de família não entra. Personagem de um roman-feuilleton pós-moderno, é autor da sua própria narrativa ficcional, inverosímil, a mascarar uma realidade composta de fragmentos desconcertantes que lhe comprometem irremediavelmente os primeiros e rombos drafts.
Entre as peripécias que tem vindo a protagonizar, os episódios que poderíamos classificar como menores, do ponto de vista de poderem, ou não, conter matéria de delito, são muito interessantes. O episódio do livro, noticiado nos últimos dias, é certamente um dos mais instrutivos sobre os comportamentos da pessoa em questão. Para se atribuir notoriedade e prestígio intelectual, um homem a quem não se conhece nenhuma reflexão sobre nada, e que fala um francês medíocre, apresenta uma tese numa faculdade francesa e publica-a em português com um sucesso de livraria que ele próprio instrumentaliza. Este é sem dúvida um dos capítulos mais engraçados da auto-novela em construção. Para qualquer observador medianamente desperto, há muito que a dúvida sobre a autoria do “mémoire” bilingue se levantava. Tendo sido apontada como explicação para a compra maciça da “Confiança” a simulação de sucesso, parece-me que pode haver outra: ao tornar o livro indisponível, ele escapa melhor a eventuais atenções e escrutínios que poderiam ter resultados incómodos. Por exemplo, a possibilidade de ficar a descoberto a mais que provável chateza da obra, seja lá quem for que a escreveu: não devo errar muito ao presumir que se trata de uma colecção de previsíveis lugares comuns sem interesse editorial. Após a encenação do lançamento, a que se prestaram algumas figuras do nosso inflacionado estrelato político e intelectual, abrilhantada por Lula como guest star, nunca mais se ouviu mencionar do livro uma só linha. A obra foi a encenação. Enquanto o autor (por assim dizer) se preparava para o fazer desaparecer das livrarias, os oportunistas ou tontos úteis escreviam prefácios, posfácios e badanas para as edições seguintes. Se já tinha perdido a confiança no mundo não sei, mas parece que no título que subscreveu não tinha lá muita.