terça-feira, agosto 31

Adjectivos



Nestes tempos de homogeneização, por vezes somos tentados a pensar que o mundo é igual em toda a parte e nenhuma deslocação nos causará surpresa. Felizmente não é bem assim. É verdade que os Starbucks e as Zaras são iguais em todas as cidades, que os filmes mainstream aparecem ao mesmo tempo em todas as salas com cheiro a pipoca por esse planeta, mas há espaço para pequenas diferenças que nos afagam a curiosidade. Em Londres, por exemplo, cidade visitadíssima, para além de se poder gozar a frescura dos 19º em agosto, ficamos a saber, enquanto descemos as escadas do metro, quantos parafusos nelas foram usados ou que Sweet Charity é o grande musical em cena. Em Lisboa temos de nos contentar com pensamentos dispersos de Sócrates, Cesário Verde ou filósofos pós-modernos que vêm pouco a propósito da viagem.

Há, pois, teatro. No Apollo da Shaftesbury Avenue revive-se todos os dias às 7:30pm o drama quase perfeito que Miller arquitectou em 1947: All My Sons, uma parábola sobre a responsabilidade, a honra, os afectos que tornam a morte impossível de aceitar ou os que a partir dela desabrocham com indiferença, as armadilhas da vida que podiam fazer o sonho americano resvalar para o pesadelo.

A versão de Howard Davies é uma cerimónia teatral de sobriedade e rigor, entrecortados pelas actuações penetrantes de David Suchet e Zoe Wanamaker. Ela, sobretudo, comunica com o público nos momentos certos até ao arrepio na pele.

É bom lembrar a sinopse: certas coisas não podem acontecer porque Deus não permite, mas acontecem mesmo assim, e um pai é sempre um pai.

Os adjectivos da crítica:

THE TELEGRAPH

stunning production
extraordinary power emotional depth
Zoë Wanamaker is outstanding

THE GUARDIAN
tremendous acting

EVENING STANDARD

poised and poignant (Zoe)
lovely geniality (David)

THE INDEPENDENT

emotionally searching, expertly acted
splendid self-conviction.
superlative (Zoe)

THE SUNDAY TIMES

excellent acting
compelling moral drama, rich characterisation

quarta-feira, agosto 25

Disfarce

Hoje apercebi-me de que o acontecimento do dia na Ibéria tem a ver com golos, bracarenses e sevilhanos. Ou não exactamente assim? Já não sei, depois de ver este comentário na Marca:

Que te meta cuatro goles el 'SuperrequeteBarça' en el Camp Nou es una cosa, por mucho que uno claudique en el túnel de vestuarios, pero que te vengan unos brasileños disfrazados de portugueses y te enseñen, uno por uno, los fundamentos de este deporte, es cosa seria.

Deselegantes, estes consumidores de estrelas portuguesas.

Curiosidades numéricas

Nos últimos dois dias o número 1.4 andou em alta.

Confirma-se: as nossas estatísticas oficiais dão-lhe destaque.

A estatística homóloga do Reino Unido não salienta o mesmo indicador (que também lhe daria vantagem: 1.6 contra 1.1), mas sim a variação relativamente ao trimestre precedente.

Se cá se tivesse feito a mesma opção, o número a aparecer nas primeiras páginas, 0.2, resultaria bem menos inflamatório dos entusiasmos.

O quadro completo está aqui, mostrando que estamos nitidamente à frente da Hungria, da Grécia e da Letónia, mas parecendo aconselhar moderação no optimismo, uma vez que os cortes no orçamento e as medidas de austeridade podem implicar uma desaceleração rápida do impulso inicial.

segunda-feira, agosto 23

Súplicas e sentenças

Pela sua iniciativa de expulsar ciganos, Sarkozy foi objecto de orações do Padre Arthur, o qual implorou a Deus que punisse o Presidente com um ataque de coração.

Enquanto isto, na Arábia Saudita um juiz procura saber junto dos hospitais do reino se é possível danificar, num ponto preciso, a espinal medula de um criminoso em julgamento. O réu terá provocado a paralisia de Abdul-Aziz Al-Mutairi após uma agressão com arma branca. Merece, por isso, ficar também tetraplégico, a menos que Al-Mutairi venha aceitar ser ressarcido em dinheiro.

O Padre Arthur, amigo dos ciganos, veio dizer um pouco mais tarde que apenas pretendia que Deus falasse a Sarkozy. Que lhe falasse ao coração, talvez.

Entretanto, um hospital saudita terá já dado resposta afirmativa ao juiz, não se sabendo embora se se disponibiliza a realizar a implantação da tetraplegia.

Não menos surpreendente, no entanto, é o grau de aprovação que mereceram as orações de Arthur entre os leitores -- presumivelmente laicos, na sua maioria -- que comentam no Liberation, e a desilusão neles provocada pela sua explicação posterior; e a franca adesão à sharia que se pode constatar também nos comentários dos leitores do Daily Mail.

domingo, agosto 22

Pobre Professor Hauser

Fazia tanto jeito que os macacos pensassem ou reagissem a estímulos como nós gostaríamos para compor uns artigos giros. Lá vão pelo cano abaixo um paper na Cognition e outro nos Proceedings of the Royal Society B. É o próprio director de Harvard que o confirma.

Uma vida por um lugar no parque

A história não tem nada de original. Na sequência da disputa de um lugar de estacionamento e de uma quase colisão, um homem de 76 anos sai do seu carro e dispara sobre a outra viatura, assassinando uma ocupante. Foi na sexta feira às 17.15, perto de Madrid.

Agora sabemos que tudo pode ser um sintoma de doença. Há três hipóteses sérias, segundo o ABC, todas devidamente descritas e classificadas no DSM-IV short circuiting, impulse control disorder ou borderline personality disorder. Os médicos de família lá nos vão servindo para tratar os problemas da hipertensão, do fígado, da mama ou da próstata, mas o dignóstico e tratamento das doenças da alma, essa críptica zona do corpo que mais escapa ao mundo das evidências, exige a experiência de um psicoterapeuta. Não há nada aqui para sorrir. Podemos por vezes escarnecer dos preciosismos e classificações dos manuais de psiquiatria e do seu possível efeito desculpabilizante, mas, com aqueles nomezinhos ou com outros, as perturbações existem e podem matar.

terça-feira, agosto 17

Sound track



Have fun.

segunda-feira, agosto 16

Penúria de ricos

Ao contrário do nosso, o governo de Zapatero anunciava há pouco tempo subida de impostos, sim, mas só para os mais ricos (categoria que, entende-se, ainda deixaria de fora ricos que bastem). A ideia seria criar um novo imposto para rendimentos superiores a 1 milhão de euros. Mas hoje é noticiado que esse objectivo não parece exequível. Os técnicos desaconselham uma medida que custaria mais do que os ganhos que iria permitir. Para além de aumentar a taxação dos ganhos com movimentos de capital, fala-se de um novo escalão do IRS (de lá) vizinho dos 50%. O problema é que há escassez de ricos, ou pelo menos de ricos tributáveis, já que apenas 8000 espanhóis declaram rendimentos superiores a 600 000€. Está-se mesmo a ver como vai acabar o filme: as medidas que ainda estão na forja irão afectar "menos ricos" com rendimentos na casa das centenas de milhares de euros e até "indigentes" que ganham um zero abaixo (e aqui já convivem vidas confortáveis com as de gente que luta para sobreviver).

O problema não é, obviamente, exclusivamente de Espanha. O aumento do número de pensionistas e os números do desemprego são dados que afectam em maior ou menor medida os países europeus. Problema difícil, mas é impossível ficarmos sem a impressão de que ou não se pensou nele antes ou não se procuram os métodos mais adequados para o resolver.

Der Ring des Nibelungen


O Anel em Bayreuth: a história, uma sinopse e o espectáculo dos aficcionados, tudo contado por Mario Vargas Llosa no El País. Imperdível a crónica deste grande mestre da escrita: Os deuses morrem em Bayreuth.

terça-feira, agosto 10

Os desincentivos a ensinar

Ontem, no Jornal das 9 da SIC Notícias, a professora Maria do Carmo Vieira (entrevistada a propósito da publicação do seu livro "O Ensino do Português") veio recordar aspectos do que continua a correr mal. Um dos alvos maiores de crítica foi a adopção da TLEBS, e fê-lo em termos que me levaram a rever o que escrevi há quase quatro anos, quando concedia que a TLEBS é assunto para adultos. O ponto de vista de M. C. Vieira é que nem para adultos aquilo serve, dada a artificialidade da classificação e a própria infelicidade da escolha de designações.

A TLEBS é um acto de arrogância de certa classe académica que frivolamente acolhe encomendas de ministérios de educação insensíveis à realidade.

Não é por acaso que, se há uma área da vida onde o risco de estupidificação é notavelmente elevado, essa área é a da educação entendida como "ciência". Felizmente há sempre quem mantenha alguma sanidade intelectual, mas o sistema está feito para eliminar os desvios. A falta de exigência, inadequação e degradação dos programas, em particular, leva a que os professores progressivamente percam a sensibilidade aos conteúdos da sua disciplina e em vez disso os reduzam a formatos burocráticos, susceptíveis de repartir por grelhas.

Imaginemos que um estudante conclui o 2º ciclo de Matemática com bons resultados e pretende fazer carreira no ensino básico ou secundário. Ele irá ter de passar pela máquina trituradora dos cursos de educação, que o farão regressar ao nível da escola primária, onde se debita ideologia e se desincentiva a crítica, onde lhe vão propor metodologias inventadas com grande economia de bom senso. Carreira adiante, terá de sofrer acções de formação onde, com poucas excepções, lhe servirão matérias espúrias ou simplesmente embrutecedoras. Como efeito disuasor é difícil imaginar melhor.

segunda-feira, agosto 9

Um caso bicudo


Ser um cidadão em pleno, ou o melhor que se possa, tomar a seu cargo a própria responsabilidade, os seus deveres e os seus direitos… Isso dá muitíssimo trabalho.



É perseguição, diz Pilar. Por causa da guerra do Iraque. Ou então é Pilar a travar a sua guerra: dívidas e juros de mora transmitem-se aos herdeiros.

A história é simples: Saramago instala-se em Espanha amargado com a conduta de um governo português. Mas o amor pátrio é mais forte e por isso decide pagar os seus impostos em Portugal, apesar de a carga fiscal ser maior. De qualquer maneira o assunto agora é entre administrações fiscais de cá e de lá: entendam-se nos tribunais sobre essa coisa menor da residência fiscal e salvaguarde-se que ninguém é obrigado a uma dupla tributação. Porque não me passa pela cabeça, nem com certeza a ninguém, que Saramago tenha omitido rendimentos. Se se confirma que há dívidas em Espanha, talvez faça sentido que o fisco espanhol reclame do nosso uma transferência. De repente dou por mim a temer pela casinha dos Bicos.

domingo, agosto 8

Um tempo perdido



No PÚBLICO de ontem, José Vieira Mendes lamenta que já não haja cinemas de reprise em Lisboa e tem saudades do Europa e do Paris. Eu também. Entusiasma-se com a recuperação do Europa pela CML e vê aí um futuro radioso para a cultura em Campo de Ourique. Eu tenho dúvidas. O São Jorge também foi "recuperado" mas praticamente não tem programação, como a consulta da página-internet, ou da da própria EGEAC, mostra logo. Claro que há uns "festivais" de vez em quando, alguns menos interessantes do que outros. Mas a realidade é que as pessoas agora, em geral, não querem ver filmes como o faziam nos anos 60 ou 70.

Nesse tempo era normal que as salas organizassem os seus ciclos de reposição, que no verão eram obrigatórios, e permitiam ver ou rever filmes de qualidade. O Europa era uma excelente sala de cinema, dispondo de condições técnicas que infelizmente já não existem em Lisboa: projecção de 70mm, uma qualidade de imagem hoje inexistente nas salas comerciais. Nunca poderemos rever aqui o West Side Story ou a Cleopatra como foram produzidos no seu tempo.

O problema é que agora temos os filmes que queremos enlatados em casa, a poucos metros da cozinha e do frigorífico. Os cinéfilos saudosos não se podem queixar: têm uma Cinematoca com programação estimável e não muito concorrida, num lugar central de Lisboa, servida por metro. Claro que encerra em Agosto: férias são férias e ver cinema é trabalho. Mas que justificação haverá para plantar tocas em todos os bairros? Não estou a ver a malta de Campo de Ourique a curtir entusiasmada na rua Almeida e Sousa.

(Foto: Biblioteca de Arte - Fundação Calouste Gulbenkian)

sexta-feira, agosto 6

Pânicos gauleses e de todos nós

Hoje não é preciso ir aos jornais de direita franceses para perceber que UMP e Sarkozy estão a viver umas horas de alívio. Uff! depois de meses com artigos a chatear por causa do folhetim L'Oreal, vem a saber-se que o povo está é preocupado com a insegurança e aprova claramente medidas recentemente anunciadas pelo Presidente e membros do governo e UMP. A taxa de aprovação entra em grande pelo eleitorado de esquerda. Ele é o retirar da nacionalidade francesa aos cidadãos de origem estrangeira culpados de poligamia ou excisão, que recolhe a aprovação de 62% dos eleitores de esquerda; ou aos delinquentes culpados de atentar contra a vida de agentes de polícia, que agrada a 50% dos mesmos; ele é o controle electrónico dos delinquentes reincidentes durante anos após o cumprimento das penas, que ganha o primeiro lugar com um apoio total de 89%!

No Libération o artigo está reservado aos assinantes e o Le Monde não o apresenta na página de acolhimento. Os detalhes podem ler-se, claro, no Figaro.

Mas nem tudo são espinhos no lado da rosa. Lembramo-nos como há um ano atrás andávamos a lavar as mãos e desinfectar objectos com frequência doentia? Dos avisos e saboneteiras que de um momento para o outro inundaram as paredes? Pois. O governo francês está em cheque com a saída, ontem, de notícias sobre o relatório da comissão do Assembleia Nacional que critica fortemente a gestão da epidemia do século que o não foi (a gripe A). Aqui sim, o Libération e o L'Humanité atacam com unhas e dentes. O Libé titula com graça que a lei foi feita pelos laboratórios. A OMS não escapa, como não escapam os peritos técnicos, suspeitos de ligação à indústria. O L'Humanité chega a escrever que a comunidade científica, com as suas predições, mais parecia desejar a propagação do vírus, reflectindo uma espécie de "desejo de pandemia." Curiosamente, uma suspeita que o mesmo sector ideológico rejeita como blasfémia quando levantada sobre os indutores de outros pânicos da moda.

domingo, agosto 1

Agosto 1980



Amanhã será novamente tema de controvérsia em Itália: completar-se-ão 30 anos sobre a tragédia de Bologna. Às 10.25 de 2 de Agosto de 1980 explodiu na sala de espera da estação central uma potentíssima bomba que causaria 85 mortos, quase 200 feridos graves e estragos de grande monta.

Eram anos de chumbo e o terrorismo com origem nos extremos do espectro político estava à solta. No caso de Bologna as suspeitas incidiam sobre a extrema direita e movimentos neo-fascistas. Depois de um longo processo, foram condenados a prisão perpétua dois activistas de direita: Francesca Mambro e Valerio Fioravanti, com uma história confessada de participação em atentados de sangue, mas que sempre negaram a sua implicação no atentado de Bologna. Mais tarde foi também condenado outro neo-fascista, Luigi Cavardini.

Há dez anos, na passagem do 20º aniversário, comentava o primeiro ministro Amato que houvera mentiras, conivências e apoios a nível do Estado. Andreotti punha alguma água na fervura, dizendo que desvios sempre tinham existido, e que era preciso atender a que no aparelho dos serviços secretos dominava a convicção de que uma espécie de guerra santa anti-comunista era necessária e meritória.

No 30º aniversário, enquanto a Associação de Vítimas reclama a desclassificação dos arquivos que podem levar a compreender a dimensão da urdidura, vêm a público elementos de uma nova teoria sobre o atentado, onde surgem o grupo do célebre Carlos "o Chacal" e uma pista palestiniana. É Rosario Priore, ex-juiz de instrução de vários processos mediáticos, que descreve todo um cenário alternativo no livro "Intriga Internacional", de que é co-autor com Giovanni Fasanella. Mas, para Paolo Bolognesi, presidente da Associação de Vítimas, se bem que a continuação das investigações seja bem vinda, a pista alternativa é uma perda de tempo.