sexta-feira, maio 27

O défice é um número complexo!!!

Assistindo ao espectáculo que nos tem sido servido nos últimos dias e a tudo o que observadores colocados em diferentes ângulos já comentaram, há que dar espaço à hipótese de que se trata de uma encenação de alto calibre técnico. Refiro-me, claro, como o título faz prever, aos episódios de apresentação do famoso défice, das medidas que aí vêm para o ultrapassar (por excesso ou defeito, não é claro para já) e o que mais se verá, porque é também óbvio que ainda não vimos tudo. A milimétrica e paciente temporização da acção alimenta a minha convicção de que tudo foi desenhado com um cuidado extremo.
Ontem à noite, na SIC Notícias, Medina Carreira disse literalmente que todos os actores em cena, até ao momento, nos andam a mentir. Para me sossegar, dou já um salto em frente e imagino que, sendo o espectáculo em cena tão subtil, o número de Medina Carreira poderia estar previsto como parte da peça. (E eu não sou nada adepto de teorias de conspiração.) Mas logo fico novamente inquieto, porque então este número só poderia servir de intermezzo para anúncios ainda mais estarrecedores. O melhor é não pensar mais nisto.

(A partir daqui a habilitação mínima para ler o post é o 12º ano de matemática.) Uma coisa, apesar de tudo, é certa: ninguém mais me convencerá, daqui em diante, de que o défice é um número real. Eu aceito que a temperatura de um local ou a hora de partida de um comboio sejam representadas por por números reais; mas acho que, a bem da transparência, o défice deveria passar a ser expresso como um número complexo - isso mesmo, com uma parte real e outra imaginária. Se a comissão que fez o cálculo tivesse anunciado que o défice para 2005 é, por exemplo, 5,01+1,82i, penso que o caso seria muito menos controverso. Mais: suspeito de que a encenação pode ir ao ponto de isto mesmo ter sido descoberto pela comissão, e ser a verdadeira causa da surpresa de Sócrates (um engenheiro sabe muito bem a diferença entre os dois tipos de números). O Presidente nem fala sobre o assunto porque, como ele próprio já informou, a matemática não é o seu forte.

domingo, maio 22

Eles já estão aqui.

Não sendo um fã da Guerra das Estrelas (na realidade, não gostei nem do primeiro filme) resta-me esperar pela dos Mundos: eles já estão aqui.

Crueldade

Num anúncio que começou a passar há uns dias nos canais de tv, e que tem como alvo a prevenção e tratamento da obesidade infantil, é mostrado um miúdo chamado Luís, mas que apenas é reconhecido com a designação de "o gordo". O filmezinho tem certamente belíssimas intenções mas parece-me profundamente cruel: as pessoas que pretende atingir são crianças, culpabilizando-as por uma situação que não resultou, certamente, de uma escolha consciente e que pode até, em alguns casos, ter causas independentes da vontade própria. É quase como vir a público amesquinhar os coxos ou os estrábicos.
Surpreende-me que ainda não se tenham feito ouvir as vozes dos que clamam contra os possíveis efeitos negativos de determinadas práticas que me parecem muito menos aviltantes: por exemplo, avaliar os conhecimentos, na escola, classificar os alunos de uma forma honesta, ou proceder a sanções de tipo disciplinar, é hoje visto como como podendo afectar gravemente a "auto-estima" (dizia-se "amor próprio" antes da invasão de papers especializados que criaram o novo jargão técnico de pendor anglicista). Será distracção ou vem aí uma nova época de pesadelo? Os gordos já são suficientemente humilhados pela galhofa dos colegas de turma e pelos vizinhos de rua. Não era preciso que a tv viesse sublinhar o desprezo a que já são votados.

Compreende-se que os "responsáveis" queiram salvar as criancinhas: a obesidade pode trazer consigo sérios dissabores e até riscos de saúde ao longo da vida. Chegar ao fim de um ciclo escolar sem aproveitamento também pode acarretar grandes aborrecimentos no futuro. Por este andar, corre-se o risco de, através da televisão, vir insultar os meninos que reprovam. Bolas! Espero que acabem por reconhecer que é preferível afixar uma má nota na privacidade da vitrina da escola, do que vir chamar burras às crianças no intervalo do telejornal.

sexta-feira, maio 20

Sobressalto II

No PÚBLICO de hoje lê-se que o Ministério da Educação garante que não há qualquer programa curricular de educação sexual (e.s.). É preciso lata! Pagam a iluminados para elaborar as orientações para o assunto, imprimem um livro com as ditas orientações para a e.s., distribuem-no pelas escolas... que diferença há entre isto e um programa? (Também poderíamos dizer que não há programa de matemática para o secundário, porque o que há é tão vago e defeituoso que foi necessário complementá-lo com toda uma série de textos explicativos...)
De resto, o site do Júlio Machado Vaz confirma no essencial o teor das notícias sobre este caso ridículo. O livro, se não é manual destinado às futuras aulas de educação sexual, "pretende ir ao encontro de necessidades de formação de professores ou outros profissionais a quem caiba a tarefa de implementar programas de educação sexual para crianças e jovens, fornecendo oportunidades de reflexão e sugestões de actuação..."
Pobres crianças, querem estragar-lhes o prazer de descobrir a vida e possivelmente reduzir a masturbação a um trabalho de casa... Está tudo doido. E o pior é que muita gente não dá por isso.

quarta-feira, maio 18

Sobressalto no encino aprendisajem

De acordo com algumas notícias recentes, o programa e os manuais de "educação sexual" estão a levantar algum escândalo e alarme.

Os factos relatados nessas notícias só poderão constituir surpresa para quem não esteja habituado a sofrer calafrios ao ler programas e manuais de outras disciplinas. O caso presente é apenas mais susceptível de inquietar os pais das crianças-cobaias desta "educação", porque toca ou pretende tocar (ao que parece, literalmente...) em zonas muito sensíveis que podem ter a ver com a formação da personalidade.

Ora, tendo presente que nem quando se trata de definir o que é razoável ensinar em Matemática no secundário (uma matéria mais que consolidada e que deveria ser mais ou menos consensual) o nosso ministério da educação consegue produzir um programa decente - influenciando pela negativa, à partida, os autores de manuais - como poderia esperar-se que viesse a produzir um programa razoável de educação sexual, matéria infinitamente mais controversa?

Parece que até há nomes sonantes de psicólogos da nossa aldeia associados `a iniciativa, o que não deve deixar-nos descansados sobre a qualidade da sua prática.

A raiz do problema é fácil de identificar: consiste na ideia peregrina, que grupos de pressão têm conseguido fazer passar com sucesso, de que tudo o que há para aprender na vida é ensinável na escola. As próprias universidades colaboram no embuste com frequência, legitimando com a concessão dos mais altos graus académicos o discurso dos arautos de certos novos "saberes" e atribuindo o estatuto de "ciência" a conhecimentos de almanaque.

sábado, maio 14

Fantasmas

Tem havido abundante e justificada indignação com a frase de um obscuro pároco a propósito da morte da menina maltratada por pai e avó. A declaração vem apenas confirmar que estupidez, insensibilidade e falta de bom senso foram por Deus distribuídas em doses ilimitadas. Os media martelaram-nos com o acontecimento todo um dia e os comentários estender-se-ão por mais algum tempo (este é mais um).

Ainda bem que surgiram críticas de todos os lados, até mesmo de vozes bem colocadas na Igreja portuguesa. Esta rejeição unânime mostra, afinal, que o episódio não tem a importância que lhe parece ter sido atribuída, circunstância provavelmente comum a muitos outros nos tempos que correm: uma rádio põe a boca no trombone com o volume no máximo e lá temos acontecimento.

Mais interessante do que esta "notícia" triste e doentia será a consideração das razões da sua insignificância. A mais importante, no meu entender, é que, se há forças que ameaçam a nossa liberdade e o modo de vida tal como os entendemos adquiridos, a Igreja Católica não é uma delas. Se podemos falar de um fundamentalismo cristão na sociedade "ocidental", ele não passa de uma excrecência quase marginal e sem credibilidade. A própria Igreja Católica tem hoje sobre os "crentes" uma autoridade pouco mais que simbólica. Abolido o Inferno e tendo-se verificado que o paraíso é na Terra (descoberta a pílula e os antibióticos, e viciados no consumo dos brinquedos electrónicos, é-nos difícil conceber um grau superior de bem estar e felicidade) a doutrina é, mesmo para os que se dizem católicos, apenas uma referência sem pressões incluídas. Há, é claro, um Vaticano, pode haver um papa com um desempenho de relevo na cena política internacional, mas não esqueçamos que, ao mesmo tempo, as mais altas instâncias políticas da Europa não reconhecem o papel civilizador do cristianismo na evolução que conduziu ao presente que somos.

Por estas mesmas razões não compreendo o clamor de receios registado com a recente eleição do papa. Estamos distraídos com fantasmas do passado e desvalorizamos ameaças bem mais reais.

Obfuscação

A ministra da Educação afinal pensa que os exames (do 9ºano) são importantes tanto para puxar pelos alunos como pelos professores. Vem no PÚBLICO de hoje. Por isso não vai suspendê-los. Mas o que é certo é que ainda há cerca de um mês anunciou intenção de acabar com esses exames a partir do próximo ano lectivo. Se calhar por achar que são inúteis ou nocivos. Parece que agora não acha. Ou há alguma coisa que me está a escapar? Ou cometo à partida o erro de tentar perceber? Que obfuscação (proponho este neologismo para substituir o desgastado trapalhada).

terça-feira, maio 10

Prurido musical

Este domingo, no PÚBLICO, o opinador musical Augusto M. Seabra dava-nos conta da sua impolutez ideológica criticando a programação pelo São Carlos, para o passado dia 8, de uma récita dos Carmina Burana. Confessou ele ter-se deslocado a Sintra, a um recital evocativo dos 60 anos do fim do Holocausto, com obras clandestinas no tempo do nazismo.

Não tenho dúvida de que a escolha do São Carlos é duplamente infeliz: por fazer coincidir o acontecimento com o aniversário que sabemos, mas também porque há muito mais música, para além da de Orff, em que seria útil investir. Os Carmina Burana não precisam de que o São Carlos os programe: empresários privados já os superproduziram duas vezes no Pavilhão Atlântico, certamente de casa cheia. (O opinador confia-nos, de resto, que não pôs, nem tenciona pôr, os pés em recinto algum onde se encene a dita obra. Eu também não: tenho duas boas versões em disco que oiço em casa em melhores condições.)

Os Carmina Burana, de Orff, constituem uma peça musical de grande inspiração, exaltante, certamente epidérmica, mas fascinante. Suspeito de que, em tempos recentes, já pôs mais gente a tomar atenção à música "clássica" (à falta de melhor uso este termo) do que sinfonias de Beethoven ou árias de Verdi. Os programadores do Pavilhão Atlântico não brincam em serviço. Uma instituição como o São Carlos tem obrigação de ser mais selectiva.

Os Carmina Burana estão mais do que integrados no nosso tempo. Quase uma dúzia de edições discográficas de altíssima qualidade, com intérpretes de grande prestígio, legitimaram a pertença da obra ao património cultural que fruimos sem complexos. A possibilidade de Orff ter andado próximo da órbita nazi é já irrelevante para o efeito.

O crítico e opinador confundiu o alvo. A questão que devia ter posto era a da necessidade de o São Carlos se ocupar de música já tão batida e com sucesso comercial. Os Carmina Burana são bons para fazer um intervalo entre a espiritualidade de Bach, a graça absoluta de Mozart ou Cole Porter e a profundidade de Mahler ou Shostakovich. Não têm estatuto que justifique o prurido ideológico em 2005.

De resto, a música vale o que vale, mas ainda bem que alguém arrancou aquela sequência de notas de onde quer que ela estivesse a aguardar o parto e a luz.

sábado, maio 7

Tanto por tão pouco

Em face dos testemunhos de intenso júbilo que o coro dos vizinhos e as reportagens de tv me trazem, como aconteceu há dois dias e nas horas seguintes, não posso deixar de me sentir apreensivo e invejoso. Digo isto a sério, não quero que os meus 6 leitores pensem que é snobice. Vários jovens adultos declaravam na tv que estavam a sentir a maior alegria das suas vidas. Isto dá que pensar: tanta felicidade a tão baixo custo! Creio que não é preciso fazer mais do que sofrer duas horas em frente da tv e ter fé no clube ou algo assim. E tão intensa felicidade pode ser atingível mesmo que o resultado não seja uma vitória no jogo em causa - basta que contribua, pela aritmética das regras, para passar a uma etapa seguinte em boa posição.
A minha apreensão e inveja decorrem de uma manifesta insensibilidade, contra a qual nada posso fazer, a toda esta alegria. Claro que não estou só: tenho a certeza de que somos uma imensa minoria de prejudicados. É-nos negada a partilha da felicidade suprema (a julgar pelas descrições que ouvi).
O fenómeno do futebol tem interessado psicólogos, sociólogos e antropólogos, mas as suas metáforas pleonásticas não me tranquilizam. O que é preciso estudar é a anomalia de comportamento que consiste nesta frieza perante os sucessos(?) desportivos, que veda uma imensa fonte de prazer a milhões (atrevo-me a arriscar) de seres humanos. Espero que a genética entre em cena para detectar a verdadeira causa desta disfunção e, claro, para propor uma cura de que eu possa ainda beneficiar.

quinta-feira, maio 5

Uma questão de estética

O actual Presidente da República está em funções há m anos e antes disso foi presidente da câmara de Lisboa n anos. Durante estes m+n anos construiu-se freneticamente em todos os bocadinhos de terreno onde cabia uma escavadora, até se chegar à situação em que existe praticamente o dobro dos apartamentos de habitação necessários à população que temos. O sistema desequilibrou a economia, canalizando o endividamento para um consumo não produtivo, ao mesmo tempo que empurrava as pessoas para emigrarem cá dentro, dos centros das cidades para as periferias manhosas. Financiam-se assim as autarquias, os bancos (já que o imobiliário assumiu o papel de canalizador de poupanças) e, claro está, os construtores. É claro que estes não tinham que estar preocupados com as condições de vida decorrentes das tristes urbanizações que os deixavam fazer. Na própria cidade de Lisboa, ainda assim um paraiso comparado com certos tenebrosos subúrbios, investiu-se pesadamente numa rede de metro que, resolvendo alguns problemas, deixa muitos outros sem solução; as linhas novas colocaram estações intermédias em áreas alvo de construção e sem segurança. Em zonas centrais, rasgaram-se estradas (não ruas), não tendo passado pela cabeça de nenhum responsável o gesto simpático de prever a sua utilização por peões. A cidade tornou-se propriedade dos carros e perigosa fora das horas de ponta.
Vir clamar contra a situação depois da casa arrombada, ainda por cima numa operação do tipo relâmpago mediático para esquecer na semana seguinte, não me parece que seja a função do PR. Ele devia salvaguardar a dignidade das suas funções recusando estes reality shows. Até por uma questão de estética.

quarta-feira, maio 4

A excepção

Não é original fazer a obervação de que a inveja é uma característica nacional. A inveja do sucesso material ou financeiro, ou simplesmente de um salário chorudo, impregna o pequeno mundo português, manifestando-se em todas as classes sociais. É mascarada pela aversão ao lucro, bem aceite por tudo o que se crê bem pensante, e convive bem com a aversão ao risco dentro de regras de jogo limpas, que também é muito nossa.
Há, no entanto uma excepção. Não recordo sinais de inveja relativamente ao mundo do futebol e às suas personagens fabulosas (neste momento estou a lembrar-me de Mourinho). Não há animosidade em relação aos nossos conterrâneos bem sucedidos no futebol, mesmo que ganhem rios de dinheiro, e ainda bem. A excepção pode atenuar os efeitos venenosos do pecado mortal.
A mesma excepção explica que, a par de censuras frequentes à camada difusa de ricos e empresários que escapam aos impostos, estejamos sempre prontos a esquecer as dívidas quando se trata dos clubes, eventualmente disfarçadas de dívidas da "liga" ou outra invenção dessas. A possibilidade de pôr em risco uma temporada de futebol lançar-nos-ia numa depressão que faria com que a seca, a estagnação económica ou o índice de desemprego parecessem brincadeiras irrelevantes.

domingo, maio 1

Domingo no PÚBLICO

Destaques: António Barreto sobre a China. Razões a favor de exames nacionais, pelo leitor Jorge Carreira Maia. Entrevista com Paul Auster, atormentado com o "momento negro" e o "fundamentalismo cristão" na América.

A PÚBLICA é um produto de notável qualidade no âmbito das revistas light. Funciona talvez como lenitivo pela humilhação que nos infligem ao sábado ao termos que comprar a execrável XIS juntamente com o jornal. Entre outros temas interessantes, inclui hoje um artigo-entrevista com António Nóvoa à volta da história da educação em Portugal e da publicação mais recente deste investigador.