terça-feira, maio 10

Prurido musical

Este domingo, no PÚBLICO, o opinador musical Augusto M. Seabra dava-nos conta da sua impolutez ideológica criticando a programação pelo São Carlos, para o passado dia 8, de uma récita dos Carmina Burana. Confessou ele ter-se deslocado a Sintra, a um recital evocativo dos 60 anos do fim do Holocausto, com obras clandestinas no tempo do nazismo.

Não tenho dúvida de que a escolha do São Carlos é duplamente infeliz: por fazer coincidir o acontecimento com o aniversário que sabemos, mas também porque há muito mais música, para além da de Orff, em que seria útil investir. Os Carmina Burana não precisam de que o São Carlos os programe: empresários privados já os superproduziram duas vezes no Pavilhão Atlântico, certamente de casa cheia. (O opinador confia-nos, de resto, que não pôs, nem tenciona pôr, os pés em recinto algum onde se encene a dita obra. Eu também não: tenho duas boas versões em disco que oiço em casa em melhores condições.)

Os Carmina Burana, de Orff, constituem uma peça musical de grande inspiração, exaltante, certamente epidérmica, mas fascinante. Suspeito de que, em tempos recentes, já pôs mais gente a tomar atenção à música "clássica" (à falta de melhor uso este termo) do que sinfonias de Beethoven ou árias de Verdi. Os programadores do Pavilhão Atlântico não brincam em serviço. Uma instituição como o São Carlos tem obrigação de ser mais selectiva.

Os Carmina Burana estão mais do que integrados no nosso tempo. Quase uma dúzia de edições discográficas de altíssima qualidade, com intérpretes de grande prestígio, legitimaram a pertença da obra ao património cultural que fruimos sem complexos. A possibilidade de Orff ter andado próximo da órbita nazi é já irrelevante para o efeito.

O crítico e opinador confundiu o alvo. A questão que devia ter posto era a da necessidade de o São Carlos se ocupar de música já tão batida e com sucesso comercial. Os Carmina Burana são bons para fazer um intervalo entre a espiritualidade de Bach, a graça absoluta de Mozart ou Cole Porter e a profundidade de Mahler ou Shostakovich. Não têm estatuto que justifique o prurido ideológico em 2005.

De resto, a música vale o que vale, mas ainda bem que alguém arrancou aquela sequência de notas de onde quer que ela estivesse a aguardar o parto e a luz.

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