Não é novidade, nas obras de ficção, a substituição do narrador omnisciente pelo puzzle caleidoscópico dos múltiplos pontos de vista das personagens. Desde a novela epistolar do século 18 até à obra prima de Vargas Llosa "Conversa na Catedral", passando pelas jeunes mariées de Balzac, pelo Drácula de Stoker, pelo Tempo de Proust e pelo muito popular mas datado Quarteto de Alexandria, deu-nos a literatura obras magníficas onde uma história é contada por acumulação de narrativas que se reflectem e ampliam, adicionando camadas de luz sobre os factos, que ora se sobrepõem, ora se contradizem.
Nas formas mais populares de entretenimento (cinema e novelas da tv) o género não tem sido explorado. É necessário chegarmos ao século 21 e à decadência da qualidade da acção política em Tugal, ou mais geralmente, ao desempenho medíocre dos actores e candidatos a actores em órgãos de soberania, para assistirmos ao despontar de um novo género ficcional que vai entroncar naquela nobre tradição literária. Não é literatura nem é novela de tv: à multiplicidade de ângulos de visão junta-se nesta nova forma de contar histórias a variedade de meios que veiculam o conteúdo. Pode tratar-se de jornais, televisão, rádio ou blogs.
É claro que o novo género está a dar os primeiros passos, mas os resultados são pouco entusiasmantes. Veja-se o caso da última produção - "O Convite". O enredo, construído em torno de 4 ou 5 personagens, conta-se em duas linhas, e nem vale a pena resumi-lo aqui porque os meus 10 leitores já o sabem de cor. O que é certo é que os diálogos são de uma pobreza alarmante. Por exemplo, a personagem feminina principal diz "é uma pessoa que só vi uma vez na vida, mas... não há condições para eu aceitar", referindo-se a um dos personagens masculinos, o qual retorque "Telefonou-me depois e disse-me que tinha reflectido e não estava interessada e por isso nem fiz participação desta conversa a ninguém". Outro diz: "É muito feio fugir ao rigor dos factos". Isto é pior do que os sripts de novelas da TVI, com tiradas do tipo "Zulmira, eu tenho que ter uma conversa muito séria contigo", ou "Pois fica a saber que se continuas a rondar o Renato vais sofrer as consequências".
Há em "O Convite" a agravante de não se passar nada, o que tornaria a produção mais adequada a um festival de arte e ensaio do que ao consumo de massas, mas para isso teria de estar muitos furos acima na caracterização e espessura das personagens, as quais se limitam a desmentir-se umas às outras. É afinal uma reposição, para pior, da técnica já usada numa novela anterior, "Free Report", que se manteve em exibição até há pouco tempo, mas em que, apesar de tudo, transpirava alguma acção.
O elemento novo e subtil nesta emergente forma de entretenimento é que as personagens julgam-se dotadas de vida própria, pensam existir fora do plano ficcional. Mal uma diz uma deixa logo outra aparece a reagir, ignorando que debita um guião de baixo nível. Infelizmente, não passam de imitações baratas dos caracteres da Rosa Púrpura de Woody Allen. Os media colaboram, não distinguindo a ficção das notícias.
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