sábado, agosto 15

Painéis, Paglia, Palin

Está quente o debate nos EEUU sobre a proposta de lei da administração Obama para reformar o serviço nacional de saúde. Uma onda de protestos e contra-protestos percorre o país, mobilizando activistas republicanos, democratas e organizações sindicais, com focos de pancadaria ocasionais e acusações mútuas de "vocês são nazis". A Casa Branca cria um site em que apela à e-denuncia dos detractores da campanha. Tudo muito simplex. A popularidade do Presidente acaba por se ressentir do caso: até apoiantes de Obama manifestam receios e dúvidas.

Certamente não é por nada que Camille Paglia publicou há 3 dias um artigo intitulado "Obama's healthcare horror". A tentativa de fazer passar rapidamente uma lei controversa, com centenas e centenas de páginas, que o cidadão comum só conhece em versão de sound-bytes, é naturalmente motivo de preocupações e censura por quem pensa pela própria cabeça. Paglia pede mesmo que outras comecem a rolar: ela, que certamente não estará só a pensar assim, atribui o caos em que a iniciativa se encontra à incompetência da equipa do Presidente. Provavelmente será preciso esperar por muitas mais gaffes para que até os apoiantes se convençam de que Obama faz o que faz por vontade própria. A mesma vontade com que escolheu os seus conselheiros.

A actuação de Obama e sua equipa na reforma da saúde veio proporcionar a Sarah Palin um ensejo de prova de vida e grande projecção. Parece que Sarah acredita, entre outras coisas e para gozo de muitos, que os dinossauros coexistiram com o Homo Sapiens, mas o que neste momento importa aos americanos (e sobretudo aos "unamerican", mimo com que os descontentes têm sido brindados pelos conselheiros presidenciais) é que Sarah descobriu a existência de "painéis de morte", escondidos na lei de Obama, mas com o rabo de fora. Chamem-lhe parva. A designação inventada por Sarah causou escândalo, obrigou os responsáveis mais directos pela lei a virem dar explicações e, cereja em cima do bolo, levou uma comissão do Senado a retirar da lei as "end-of-life provisions". Para algo que diziam não existir e ser invenção da Palin, nada mau.

Há obviamente um risco cultural em jogo, que seria o de alguém acabar por convencer os americanos de que os dinossauros foram realmente nossos contemporâneos e, sabe-se lá, que existam ainda para aí nalguma reserva. Mas temos que reconhecer com honestidade que Sarah não se tem aproveitado da situação.

POST SCRIPTUM a propósito da reforma do sistema de saúde nos EEUU: Das grandes intenções à dura realidade. Em 2008, Obama propunha-se enfrentar a indústria farmacêutica com o recurso a genéricos e a medicamentos comprados fora dos EEUU. Uma discreta notícia do New York Times, de 5 de Agosto, revela que a Casa Branca já garantiu ao lobby dos fabricantes de medicamentos que os seus prejuízos serão limitados. A administração Obama puxa assim para o seu lado um importante lobby que agradecidamente colaborará na publicidade da nova lei.

2 comentários:

Jorge Salema disse...

Vou apenas desmontar os disparates mais óbvios deste post engraçado.
1. O presidente Obama não se propõe reformar serviço nacional de saúde. Não existe nenhum. O que temos nos EUA são as seguradoras privadas e dois planos públicos de cuidados de saúde. MediCare e MediCade.
2. Muitas Bill tem centenas de páginas. Nunca se pensou que o tamanho de uma lei fosse por si só um problema. Esta tem sido debatida do Congresso, aos media passando pelas comunidades locais. Exposta a grande escrutino.
3. A proposta de lei que aqui se comenta, é de facto um "horror". Para as companhias de seguros. O autor que indique um caso (basta um) em que a classe média esta segura em cuidados de saúde num universo desprovido de um serviço publico gerido pelo estado.
4. Sobre a defesa da arguta Palin, (que o autor diz tratar-se de um problema cultural, radicado num problema de paleontologia)temos de recordar que os painéis da morte existem há muito - as comissões das seguradoras que todos os dias negam cuidados de saúde aos segurados.
5. este artigo representa um problema de facto, para quem pensa pela própria cabeça ao invés de reproduzir as mais miseráveis farsas dos lobbies da industria seguradora.

lino disse...

O tema central do post é: por inabilidade ou incompetência, ou porque a proposta é mesmo má, a equipa de Obama está a ter dificuldade em fazer passar a bondade da sua "reforma" mesmo junto dos seus apoiantes e acaba até por proporcionar à "estúpida" Palin um inesperado tempo de antena.
Quanto aos bons e aos maus da fita, há-os de certeza, mas eu que sou um pessimista julgo que estarão espalhados um pouco por todo o lado. O sistema de saúde no momento actual deve ser mau, sim, mas não com a nitidez com que o pintam(http://www.foxnews.com/politics/2009/06/24/obama-pushes-national-health-care-americans-happy-coverage/ e http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1395928) e a questão é saber se a "reforma" Obama vai no sentido de efectivas melhorias e coberturas. Quando se vai a certas entrelinhas, percebe-se que em vez do lobby das seguradoras a decidir onde se corta para poupar corre-se o risco de ver surgir os burocratas do governo a decidir onde se corta para poupar. (O problema é que, mesmo que todos fôssemos bondosos - e as seguradoras não são, mas também não sei se um governo o é - os custos limitariam a prática da bondade que gostaríamos de exercer.)
A dimensão da contestação à proposta deve ter surpreendido o próprio governo; e se houve campanha de algum lobby contra a proposta, não deve ter excedido em meios os utilizados pelo governo na sua publicidade. Provavelmente a campanha dos "contra" foi mais credível para muita gente, a ponto de a Casa Branca ter apelado à delação de conteúdos "fishy" atrávés do flag@whitehouse.gov.
O governo escolheu desta vez o lobby da indústria farmacêutica como auxiliar da sua campanha, mas os humores mudam com o tempo. Muitos americanos podem ainda recordar a campanha de ridicularização que a "indústria da saúde" moveu à pretendida reforma de Hillary no tempo de Clinton, terminando por apoiá-la na corrida ao Senado em 2006. Tudo junto, pode parecer "rather fishy".