Vasco Pulido Valente refere hoje, na sua crónica no PÚBLICO, os carnavais dos velhos tempos salazaristas que "metem dó"... e diz que "felizmente, a polícia de Ditadura suprimiu estas manifestações". É verdade: os carnavais até ao fim dos anos 50 implicavam, tanto quanto me permite recordar a minha memória de criança, brincadeiras inaceitáveis para os nossos padrões de hoje. Vivi até à adolescência numa vila alentejana e não esqueço uma partida de carnaval a que assisti de perto. Naquele tempo, quando se chegava à porta de alguém, não havia campainhas, mas sim uns martelos metálicos. A família A, que vivia uma porta a seguir à minha, tinha um velho contencioso com a família B (universalmente considerada antipática), que vivia no outro lado da rua. Num carnaval que a minha memória e discreção não me permitem precisar, a criada (agora diz-se empregada doméstica, mas nessa altura essa expressão pareceria de um outro planeta) da família A foi untar o martelo da porta da família B com fezes (dos A, obviamente), veio contar às crianças da rua e ficámos todos atrás das cortinas a ver quando chegava o Sr. B a casa: gritou impropérios ao perceber que tinha posto a mão em merda.
E a minha avó materna falava dos "batecus" de ainda mais antigamente: dois fulanos abordavam um sujeito indefeso, um pegava-lhe pelos braços e outro pelas pernas e faziam-no bater repetidamente com o traseiro no chão.
Mas há outra memória do carnaval daqueles tempos que tem mais elevação: as "danças". As danças eram grupos de homens que percorriam a vila, parando aqui e além, executando uma coreografia monótona mas embaladora, tendo por fundo um texto do qual não recordo uma palavra, e com muita percussão, muitas pandeiretas. Metade actuavam como homens e outra metade travestidos de mulheres, lábios pintados de encarnado e maquilhados com enormes rosetas nas faces. As pessoas diziam "vamos ver as danças", ou "vem aí a dança", e tudo parava a ver e escutar. Provavelmente tratava-se da sobrevivência de um ritual medieval, que poderia fazer as delícias de antropólogos sem assunto e motivar alguma tese de mestrado ou doutoramento mais interessante do que muitas. Talvez existam estudos sobre o assunto, mas não os não conheço. Garanto, eu vi as danças, da minha janela, muitos anos atrás, quando era tão pequeno que não me deixavam sair à rua sozinho.
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