sábado, janeiro 21

O amor nos tempos de internet (6)

Na tarde de sexta feira saí mais cedo e arranquei para o Porto. Tinha ficado combinado que me encontraria com a Matilde às 10 de sábado no terminal rodoviário. Apesar do excelente ambiente no hotel e da macieza do colchão não dormi muito: acordei às cinco e a minha cabeça, cheia de Matilde, não permitiu a reentrada do sono.

Nos dias anteriores tinha sido delicado manejar a convivência com a Rita. Prudentemente, não tínhamos tomado nenhuma decisão, mas ela dormia frequentemente lá em casa. Olha, vou ter que ir de urgência a Barcelona. Há reunião do conselho da Ibervida no sábado, disse eu. Surgiu a oportunidade de uma fusão com a Ellos e é necessário fazer uma avaliação prévia da situação.

Ah, sim? disse ela, sem levantar os olhos do dossier em que estava a preencher dados. Mas de quem partiu a proposta? Percebia-se a incredulidade que ela
pretendia sublinhar. Eu estava relativamente tranquilo: a situação da Rita na Mundial não lhe permitia ter acesso ao conhecimento das grandes operações que se desenhavam no mundo dos seguros. É verdade, insisti. Vai ser um dia inteiro de reunião e não sei se não continuará ao domingo. Que stress, isto caiu-me em cima de repente.

Como eu calculava, conhecendo a grande discreção da Rita, ela aceitou implicitamente que na sexta feira regressaria à sua casa e só voltaríamos a ver-nos na minha volta. Também não se ofereceu para me conduzir ao aeroporto, o que me evitou a maçada de pôr em acção o plano B, e a hora de chegada que lhe anunciei, para a manhã de 2ª feira, era totalmente dissuasora de uma espera.

Na manhã de sábado o Porto acordou com aguaceiros e frio. Quando me aproximei de carro a chuva tinha parado. Reconheci a Matilde imediatamente: vestia um casaco bege grosso e fazia oscilar na mão um pequeno guarda chuva azul claro, a linha do olhar perpendicular à estrada e a boca entreaberta num sorriso. Virou-se como se adivinhasse a minha aproximação. Ao entrar pôs a mão nas minhas e mostrou-me o olhar mais luminoso que eu já tinha visto. Não era uma mulher, era um milagre. Matilde diz: olá!!!, disse-me. Depois de uma fracção de segundo compreendi e retribuí: L. diz: agora sim, vou-te beijar, e passei ao acto quando já de trás me businavam. Foi o início de dois dias que marcaram todos os dias que se seguiram.

Na segunda feira, quando a Rita chegou para o jantar, lá estava a minha mala de viagem displicentemente abandonada no chão do quarto, com a etiqueta de um voo anterior porque eu tinha a certeza de que não lhe passaria pela cabeça ir controlar a data. Detesto ter de descrever o meu cinismo e a minha capacidade de fazer jogo duplo. Não me agrada que o autor disto nos ponha a falar na primeira pessoa. Um narrador omnisciente e distanciado falaria muito melhor do meu lado sombrio.

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