terça-feira, julho 26

Dos direitos em abstracto às políticas concretas

Há poucos dias escrevi sobre a Xis a brincar. Hoje volto a escrever motivado pela Xis, mas o assunto é sério.

No último sábado, a revista organizou uma série de artigos sobre homossexualidade. Incluiu declarações de Miguel Vale Almeida, com destaque para a frase: "Achei muito cedo que tinha todo o direito a ser homossexual."

Que há nisso de extraordinário, perguntará quem está a ler. À primeira vista nada, porque felizmente vivemos num lugar e num tempo em que é reconhecido a cada um o direito de viver a afectividade de acordo com o que sente por dentro e não segundo uma imposição social. Em segunda leitura, no entanto, chama-me a atenção a falta de rigor implícita ao omitir-se que um direito só existe ligado a um lugar e a um tempo. É útil e importante afirmar os direitos e lutar por eles mesmo quando parecem apenas utopias, mas na ausência de determinadas condições de evolução social eles permanecem isso mesmo - utopias. A bem da clareza, o Professor de Antropologia poderia ter dito: "Pude afirmar-me homossexual desde muito cedo porque tive a sorte de nascer na Europa ocidental, na segunda metade do século 20." Bem sabemos que continua a haver incompreensões, intolerâncias e até perseguições por parte de alguns grupos, mas o certo é que, exceptuados casos pontuais, a referida "afirmação" não envolve riscos significativos.

O autor da frase sabe muito bem que ela seria completamente desprovida de sentido se o lugar e o tempo fossem os da URSS, Cuba, certos países africanos, ou países muçulmanos nos nossos dias (o que se passou há uma semana no Irão é elucidativo)...

Na Europa, ou, se quisermos ser mais abrangentes, no "ocidente", onde a herança clássica e cristã moldou a civilização que porventura mais respeita o indivíduo (além de permitir acesso a bens materiais a uma larga maioria da população) é possível, felizmente, afirmar características pessoais que noutros sítios podem valer uma sentença de morte. Trata-se de uma circunstância, entre muitas, que deveriam ser suficientes para alinharmos na defesa do nosso modelo - mesmo que possamos reconhecer-lhe imperfeições e erros - em vez de o subestimarmos pela óptica multiculturalista em voga.

Só para dar um outro pequeno exemplo: em que outro mundo seria possível fazer carreira profissional investigando sobre género, sexualidade e corpo? Também aqui o lugar e o tempo não são indiferentes. Foram as universidades dos países anglo-saxónicos, de resto, que conferiram estatuto científico a tais matérias...

Estas omissões não me parecem inocentes. Elas são condicionadas por preconceitos ideológicos que se traduzem em atitudes políticas nocivas. Cada cidadão é livre de se posicionar ao lado das forças que criticam a necessidade da luta contra terroristas que pretendem transformar todo o mundo num imenso pesadelo islâmico; se o faz é porque desvaloriza completamente a ameaça. Paradoxalmente, a nossa sociedade gerou em si o melhor aliado do seu inimigo mais mortal: um aliado que até lhe fabrica argumentos. A Al-Qaeda forjou e tirou espectacular partido do 11 de Março não por Aznar ter apoiado a invasão do Iraque, mas principalmente porque no dia 14 ia a votos um grande partido que defendia posições que os terroristas souberam comprar e capitalizar como suas. Ao fazer o jogo do inimigo, colocamo-nos na sua mira.

Também por isso discordo do Professor por a candidatura de Soares lhe merecer apenas um bocejo: acho que é motivo de grande inquietação.

4 comentários:

AA disse...

Bem visto.

Anónimo disse...

"felizmente vivemos num lugar e num tempo em que é reconhecido a cada um o direito de viver a afectividade de acordo com o que sente por dentro e não segundo uma imposição social"
Isto que afirma Lino é verdade?
Não me parece que seja exactamente assim... Claro que é bastante melhor do que no Irão ou em certos Estados dos EUA.

Mojo_risin disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Mojo_risin disse...

A frase do Professor está perfeitamente correcta e é independente de qualquer conjuntura. Achar que se tem um direito não implica a que ele se verifique. Portanto, essa convicção pode ocorrer em qualquer país deste mundo, com graus diferentes de conveniência.