Despertou uma curiosidade natural, ao surgir há dois dias nos jornais, o caso subitamente famoso da acção de divórcio movida em Roma por Antonio C., agora com 99 anos, contra a sua mulher, Rosa T., de 96, com quem casara em 1934 e de quem tem cinco filhos.
O motivo desta crise conjugal leva-nos a 2002 quando, ao remexer o fundo de uma gaveta, Antonio descobre um maço de cartas escritas pela mulher ao amante, cerca de 1940. Rosa confirma a traição ocorrida sessenta anos antes, mas Antonio não perdoa e sai de casa. Regressa algum tempo depois mas a convivência do casal parece irremediavelmente destroçada.
Costumo acreditar que a realidade sempre supera a ficção em riqueza e coerência de detalhes, mas este caso suspende por momentos tal axioma.
A cronaca evoca irresistivelmente a trama de Boquitas Pintadas, obra prima de Manuel Puig que merecia muito mais destaque do que o que tem obtido. Nené, uma das heroínas do livro, a quem as voltas da vida impedem de viver o seu amor por Juan Carlos, acaba por casar com Donato Massa, um homem rico mas de quem não gosta. O seu amor antigo continua vivo, e ao saber da morte de Juan Carlos entra em contacto epistolar com a mãe do falecido, em quem se apoia para confidenciar como vive frustrada o seu casamento, e pede o reenvio das cartas de Juan Carlos, devolvidas no fim do namoro. As cartas de Nené caem em mãos de Celina, irmã de Juan Carlos, invejosa e má como as cobras, amarga com a vida por motivo do seu insucesso com os homens. Celina nunca suportara que Nené namorasse o irmão: desprezava-a por ser mais pobre, invejava-lhe a beleza e atribuia-lhe, pelos encontros em noites geladas, a culpa da tuberculose que destruiria Juan Carlos. Vinga-se então, enviando a Massa as cartas de Nené e a Nené as cartas de Juan Carlos. Descoberta, Nené sai de casa mas sabemos no último episódio que regressa e que o casal viveu reconciliado até que uma doença grave acaba com Nené aos 52 anos. O último trecho do romance sublinha que Donato perdoou à esposa e termina com o Senhor Massa a queimar as cartas de amor de Juan Carlos e Nené. As cartas de Nené ardem tranquilamente, mas as de Juan Carlos resistem e encrespam-se, deixando ler fragmentos de linhas onde ardem promessas amorosas que nunca puderam ser cumpridas.
A ficção parece ficar a ganhar. A história de Nené surge mais rica que a de Rosa T. e o tempero do perdão confere-lhe um final amargamente redentor. Mas a verdade é que da história de Rosa T. sabemos só as poucas linhas que os jornais contaram.
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