terça-feira, março 7

O amor nos tempos de internet (9)

SOFIA

Desde que passei a viver com o Filipe, tenho que vir no meu velho punto para o trabalho em Lisboa. A diferença de horários e a distância entre os lugares de trabalho não nos permitem usar um só carro. Mudanças menores. Sabendo ele que eu estava habituada ao palácio do L., foi com um ar tímido que me disse, a primeira vez que me levou a sua casa: Aqui não tens electrodomésticos topo de gama... e eu comentei nessa altura que me bastava uma máquina de lavar roupa razoável: a invenção mais injustamente subestimada, provavelmente emsombrada pela pílula.

Para queimar os quarenta minutos que agora passo, todas as manhãs, no IC19, ligo o rádio, mas só como contrabalanço do ruído exterior da estrada. Os ouvidos não lhe dão atenção. O pensamento foge sistematicamente para episódios vividos em datas recentes. Todos os dias me recordo da decisão que tomei, chocada com o desfecho infeliz do meu namoro de faculdade, quando não quis ficar de braços cruzados à espera do que viria a seguir. Os colegas já tinham falado de uma coisa nova que tinha aparecido na internet, um site de namoros . Fui então ao namoros.com e redigi um anúncio piroso: "Não sou Vénus mas com certeza não darás como perdido o tempo que gastares para me conhecer. Idade não importa". Dois dias depois o L. enviava-me um número de telefone. No fim fiz sofrer o L. e fiz-me mal também a mim.

Mas ultimamente o que passa obsessivamente na minha cabeça, como uma cena de filme que se pode ver e rever em disco, é o episódio da nossa ida a Coimbra, no último ano em que estivemos juntos. O meu contacto com o Eduardo tinha sido sempre difícil: nunca perdoou ao L. a separação da mãe. Numa certa sexta feira de Janeiro o Eduardo estava connosco e o L. sugeriu que fôssemos sair de Lisboa. Fiz então mais uma tentativa de ser agradável: era boa altura de irmos visitar o António Reis, advogado bem estabelecido em Coimbra. Tinha sido meu colega e amigo muito próximo num 1º ano em que ele, por engano, frequentara economia. E todos os meses renovava o convite para lá irmos. Poderia ser de interesse para o Eduardo, finalista quase a ser despejado no difícil mercado de trabalho, ter um contacto potencialmente muito útil.

No sábado passeámos pela fila de praias entre a Consolação e S. Pedro de Muel e depois rumámos a Coimbra, onde o António e a Clara nos esperavam para jantar. O casal pareceu genuinamente simpatizar muito com o L. e o Eduardo, que tinha estado razoavelmente animado para o que era costume. Depois da fantástica perna de borrego no forno com um Rioja jovem, a Clara sugeriu que fôssemos ver a vivenda "deslumbrante" que tinham comprado em S. Martinho. Mas o António e o Eduardo estavam já enredados numa grande conversa sobre temas de advocacia. Clara, levas tu o L. e a Sofia, parece que o Eduardo tem vontade de ver os meus arquivos e a biblioteca.

O António era ele próprio um verdadeiro arquivo. Além de poder recitar os vários números de telemóvel de amigos e conhecidos, os NIB das contas bancárias, os números de utente disto e daquilo, tinha uma colecção descomunal de acórdãos que sabia quase de cor.

Nós fomos então com a Clara e eles ficaram. Quando voltámos, o Eduardo e o António tinham saído. A Clara tinha sido prevenida pelo telemóvel: vou fazer de guia do Eduardo à vida nocturna de Coimbra. Ficámos na conversa e no whisky até eles chegarem, já passava das duas. O Eduardo parecia estar ausente, talvez num sítio dentro de si mas longe dos outros, e quase não abriu a boca até ao regresso a Lisboa. A memória não teria regressado com insistência a esse dia se não fossem os factos de que o L. me falou recentemente.

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