sábado, dezembro 31

A traição de Rosa T.

Despertou uma curiosidade natural, ao surgir há dois dias nos jornais, o caso subitamente famoso da acção de divórcio movida em Roma por Antonio C., agora com 99 anos, contra a sua mulher, Rosa T., de 96, com quem casara em 1934 e de quem tem cinco filhos.
O motivo desta crise conjugal leva-nos a 2002 quando, ao remexer o fundo de uma gaveta, Antonio descobre um maço de cartas escritas pela mulher ao amante, cerca de 1940. Rosa confirma a traição ocorrida sessenta anos antes, mas Antonio não perdoa e sai de casa. Regressa algum tempo depois mas a convivência do casal parece irremediavelmente destroçada.

Costumo acreditar que a realidade sempre supera a ficção em riqueza e coerência de detalhes, mas este caso suspende por momentos tal axioma.

A cronaca evoca irresistivelmente a trama de Boquitas Pintadas, obra prima de Manuel Puig que merecia muito mais destaque do que o que tem obtido.  Nené, uma das heroínas do livro, a quem as voltas da vida impedem de viver o seu amor por Juan Carlos, acaba por casar com Donato Massa, um homem rico mas de quem não gosta. O seu amor antigo continua vivo, e ao saber da morte de Juan Carlos entra em contacto epistolar com a mãe do falecido, em quem se apoia para confidenciar como vive frustrada o seu casamento, e pede o reenvio das cartas de Juan Carlos, devolvidas no fim do namoro. As cartas de Nené caem em mãos de Celina, irmã de Juan Carlos, invejosa e má como as cobras, amarga com a vida por motivo do seu insucesso com os homens. Celina nunca suportara que Nené namorasse o irmão: desprezava-a por ser mais pobre, invejava-lhe a beleza e atribuia-lhe, pelos encontros em noites geladas, a culpa da tuberculose que destruiria Juan Carlos. Vinga-se então, enviando a Massa as cartas de Nené e a Nené as cartas de Juan Carlos. Descoberta, Nené sai de casa mas sabemos no último episódio que regressa e que o casal viveu reconciliado até que uma doença grave acaba com Nené aos 52 anos. O último trecho do romance sublinha que Donato perdoou à esposa e termina com o Senhor Massa a queimar as cartas de amor de Juan Carlos e Nené. As cartas de Nené ardem tranquilamente, mas as de Juan Carlos resistem e encrespam-se, deixando ler fragmentos de linhas onde ardem promessas amorosas que nunca puderam ser cumpridas.

A ficção parece ficar a ganhar. A história de Nené surge mais rica que a de Rosa T. e o tempero do perdão confere-lhe um final amargamente redentor. Mas a verdade é que da história de Rosa T. sabemos só as poucas linhas que os jornais contaram.

sexta-feira, dezembro 30

Recaptured time story



O cast the uma produção de West Side Story em 2007 recebe, em ensaio informal, 22 membros do cast original (1957). Em cinquenta anos os corpos perdem elegância e agilidade, as vozes frescura e firmeza. Mas, apesar do contraste, a passagem do tempo não apaga o entusiasmo com que se encarnam estas palavras, esta música e esta coreografia extraordinárias. Estão aqui a Maria e a Anita originais, bem como alguns dos Jets. Quando já se foi Jet, pode-se voltar a sê-lo meio século depois.

(Descoberto em neoneocon)

domingo, dezembro 25

Entre as pedras e a forca: uma questão de jurisprudência

O caso de Sakineh Mohammadi Ashtiani já deu a volta aos jornais do mundo. A Amnistia Internacional promoveu acções de protesto e houve abaixo-assinados pela anulação da sentença. Sakineh, que se encontra a cumprir uma sentença de 10 anos de prisão e parece que já levou 99 chicotadas, enfrenta duas condenações à morte: uma por lapidação, correspondente ao crime de adultério, e outra por enforcamento, dado estar condenada também por cumplicidade no homicídio do marido.

Sobre o assunto se pronunciou Malek Ajdar Sharifi, responsável provincial de justiça, em conversa com estudantes da universidade do Azerbaijão, explicando que a sentença de lapidação não foi executada na devida altura por ausência de meios, e que se aguarda sem pressa o parecer das altas instâncias sobre se é possível comutar a pena para o enforcamento.

Mohammad Javad Larijani, secretário geral do Conselho Iraniano para os Direitos Humanos, tranquilizou os indignados com a sentença, afirmando mesmo que o apedrejamento é mais um castigo que um método de execução, já que metade dos condenados acabam por sobreviver.

Os domésticos

No dia 1 de janeiro de 2012 muitos espanhóis poderão converter-se em empregadores e centos de milhares de postos de trabalho poderão ser criados. Tudo isto por efeito da entrada em vigor do novo sistema de segurança social dos empregados domésticos (mais de 90% dos quais são mulheres). Entre outras novidades, passa a ser direito destes trabalhadores um contrato escrito, mas fica de fora o direito a subsídio de desemprego. Como indicativo de quantias mínimas a pagar, 20 horas mensais importarão em 19,84€ de contribuição, dos quais 16,51 a cargo do empregador.

Teoricamente é assim. Num primeiro tempo, provavelmente o efeito será a destruição de postos de trabalho. Pelo menos no caso de baixos horários, é natural que o potencial empregador se recuse a ter mais trabalho com a burocracia do processo do que o que teria limpando a casa.

sábado, dezembro 24

O planeta Kim: uma tia no trono

Chora a Coreia do Norte a defunção do amado líder. Num frémito contido como o da locutora que o mundo viu a dar a notícia, em execução competente e rigorosa da discreta exibição da dor; ou em prantos desatados com que os cidadãos anónimos competirão entre si na demonstração de fidelidade à dinastia.

Entretanto, quem reinará? De acordo com os observadores desse estranho mundo, talvez o mais próximo do que o nosso imaginário poderia identificar como pertencendo a outro planeta, o menino Kim Jong-Un, designado pelo pai como sucessor, não tem idade nem experiência para ser aceite de imediato como herdeiro do trono. Pensamos que ronda os 27-28 anos, mas lá dentro a idade do miúdo nunca foi divulgada, por causa das coisas. Se fosse bonito ainda talvez passasse, mas, com aquela cara, ninguém no aparelho correrá a encher muros e paredes de fotos tristes. No entanto, o controlo do poder foi salvaguardado em vida por Kim Jong-Il, que o ano passado promoveu a sua irmã Kim Kyong-Hui a generala de quatro estrelas.

Gosto particularmente dela nesta foto, onde aparecia sentada ao lado do pai num banco de jardim. Agora já tem 65 anos. Mulher voluntariosa, apaixonou-se ou algo assim por Jang Song-Taek nos seus tempos de estudante. Jang era um sucesso entre o pessoal da faculdade porque cantava e dançava bem, mas nunca agradou ao papá Kim Il-Sung. Nada fez recuar Kim Kyong-Hui, que resistiu às pressões do pai e acabou por se casar com Jang em 1972. Apesar de uma desaparição de cena por volta de 2002, parece que por causa de problemas com o álcool,  Hui não perdeu a confiança do irmão, que nos últimos anos se deixou fotografar na sua companhia e do cunhado. Hoje, Jang é o número 2 do comité de defesa nacional.

O casal teve uma filha e depois um filho. A filha exilou-se em Paris, mas a mãe nunca a deixou em paz, querendo-a sempre de volta para exercer funções na corte. A rapariga acabou por se suicidar.

Em 3 de Junho de 2010, a informação norte-coreana revelou que o presidente do partido, Yi Che-kang, falecera num acidente de trânsito. Acidentes de trânsito, num país sem carros, constituem uma maneira eufemística de mencionar execuções capitais. Sabendo-se que Yi era a segunda figura do estado e portanto rival de Jang, não será muito especulativo atribuir à pérfida Hui a montagem do acidente.

De acordo com a Wikipedia, Hui lançou-se agora nos negócios da restauração, possuindo uma hamburgeria em Pyongyang. Sendo de presumir que os palácios da capital regurgitam de conspiradores, suspeito que ainda vai haver notícias de que alguém teve uma indisposição fatal por causa da carne picada. A tia Hui é conhecida por não descansar em serviço e com certeza percebe de molhos.

domingo, dezembro 18

As urdiduras de garín

O folhetim continua a pingar episódios todos os dias nos jornais espanhóis. As aventuras de Urdangarín no Instituto Nóos, em ligação com instituições de governo ou institutos ditos de utilidade pública, começam a ser reveladas com abundância de pormenores. É claro que tudo se reduz a sorver dinheiro do orçamento de estado ou de um governo autónomo para contas privadas sob a aparência de serviço público, mas naturalmente são os detalhes que emprestam à novela a vida com que palpita. É o caso do patrocínio a uma equipa de ciclismo falida no período 2004-2006, implicando a Fundación Illesport através do presidente das Baleares, terminando com a realização de contratos sem concurso público e muitos euros a mudar de mãos. Os investigadores dizem-se surpreendidos pela abundância de pistas deixadas pelos actores da novela, o que simplesmente indicia que sempre se julgaram totalmente impunes.

Pormenores à parte, nada de que não se soubesse, ou pelo menos se suspeitasse fortemente, há anos, quando Urdangarín foi despachado para Washington com um belo emprego na Telefónica. Dizem hoje os jornais que o movimento foi aconselhado por um assessor da real casa. Mas o dano está feito. Podem os títulos situacionistas vir dizer que Urdangarín "enganou o rei", podem as sondagens tranquilizantes vir dizer que o povo não perdeu confiança na monarquia, mas... se em 2006 já "se sabia", o rei não sabia?

terça-feira, dezembro 13

O calvário dos honrados inocentes

Irá Urdangarin, ou duque de Palma, passar o Natal  com a família? Com a real talvez não. Os mestres de cerimónias tratarão de evitar o ambiente espesso que pode surgir quando se recebe em casa alguém suspeito de desviar para paraísos fiscais uns milhões surripiados ao dinheiro público, a coberto da pureza de intenções de uma espécie de ONG. O problema é que as coisas vieram a saber-se por filtrações para os jornais, na sequência do inquérito aberto pela Procuradoria Anti-Corrupção das Baleares.´

Urdangarin declara-se pesaroso pelo seu porta-voz. Reafirma a sua honra e inocência. A Casa Real toma precauções, distancia-se e atreve-se a afirmar que a conduta do genro dos reis não parece exemplar. A Casa sabe muito bem que por enquanto não há culpados formais, mas perante a verosimilhança das sucessivas revelações, e na ausência de uma versão credível que inocente o rapaz, mais vale resguardar-se de danos futuros.

quinta-feira, dezembro 8

A Dívida explicada às crianças

Com matemática e tudo, está aqui.

Conselhos ao instrutor:

...have students write down their ideas down about why countries like Greece, Italy, Ireland and Portugal are considered “more worrisome,” ..., and why they owe so much money to other countries.

Termina com um exercício:

Explain that a conventional solution to a debt crisis is to loan money to a country loaded with debt so that its creditors can be paid. Make a list of the potential benefits and hazards of such action, addressing questions like “Where does the money come from?”, “What are the potential consequences for the lenders?” and ”What are the potential consequences for the borrowers?”


Atenção: esta actividade envolve conceitos que um adulto pode ter dificuldade em compreender.

domingo, dezembro 4

Denúncias da impureza

Nos Estados Unidos a vida não é fácil para um negro que aspire a altas funções sem ser em representação do Partido Democrático. É o que mostra a desistência de Herman Cain, após denúncias de aventuras extra-conjugais. Denúncias frágeis, mas com a suficiente verosimilhança para que uma imprensa, predominantemente favorável ao campo concorrente, executasse com êxito a sua função de desgaste.

Os Republicanos não saem bem do filme: com uma sucessão de candidatos fracos e já abatidos, sem possibilidade nem capacidade de resposta aos ataques que em campanha são inevitáveis e devem ser estudados, fica a nú a fraqueza e a mediocridade do partido.

Também não é animador, independentemente das posições políticas, o peso do conservadorismo americano onde o campo democrático se inclui sem pejo, cadinho onde medram as reacções hostis aos deslizes de alcova. Os cargos de topo arriscam-se a ficar reservados aos irrepreensivelmente castos, sintoma preocupante para a América e para o mundo. Como é que um cidadão, que nem venceu com êxito a provação das angústias e do stress que umas infidelidadezitas proporcionam, vai reagir à pressão infinitamente maior de comandar a nação por enquanto mais poderosa do planeta?

A denúncia alcoviteira é uma tentação enorme a que a Europa também não escapa. Hoje, no Journal du Dimanche, o próprio Ministro do Interior vem dar uma marretada na cabeça de um DSK já politicamente
moribundo, confirmando um facto de que se sabia à boca pequena e que não deu origem a qualquer acusação: que o antigo chefe do FMI teria sido apanhado há cinco anos num controlo policial no Bois de Boulogne. O enquadramento e os factos são diferentes, mas é extraordinário que o próprio responsável pelo Interior confirme quase gratuitamente (bastou perguntar) um facto da vida privada de um cidadão. Para responder à teoria absurda do complot Manhattaniano, não havia necessidade de ir tão longe.