sexta-feira, julho 23

O enigma de Coelho

Não é clara a intenção do PSD e do seu líder com o episódio das alterações à constituição. Para além de marcar a agenda dos jornais e tvs por uns dias, os ganhos do ponto de vista de quem propõe são mais do que duvidosos. Para mim, o mais credível é que Coelho está aterrado com a mera hipótese de vir a ter que governar isto em breve. (Eu também estaria.) Assim, dá de bandeja à concorrência a oportunidade de agitar o espectro da destruição de conquistas disto e daquilo, finge ser um perigosíssimo neo-liberal - nome que já está a tomar, no imaginário simplório da sopinha de cultura socialista, o lugar do antiquado "fascista" para gozo dos cinco minutos diários de ódio a que os cidadãos têm direito - e fornece a oportunidade para todas as eminências do regime virem a público fazer alarmismo com o regresso a pretéritos a gosto e proferir outras banalidades, das quais a mais verdadeira é que não havia necessidade.

De facto, não há. O "SNS grátis" é um problema mal posto. Não há, nem haverá. O que há é um SNS falido. A tímida redução de que tem sido objecto é apenas um início. O seu custo incomportável pela dimensão da dívida torná-lo-á, por via das novas medidas que o governo será obrigado a tomar a curto prazo, tendencialmente desmantelável tal como existe. As classes que ainda têm algum guito terão de passar sem férias em Cancun e prescindir dos LCDs panorâmicos, para pagar cuidados médicos e hospitalares. Lamentavelmente, os que nem férias têm (quem sabe se por estarem no desemprego) ficarão também pior servidos. Resultado de políticas de gastar sem fazer as contas.

Quanto ao "ensino público", o trabalho de o desacreditar até ficar de rastos tem vindo a ser exercido meticulosamente por todos os governos recentes, merecendo destaque a "paixão" de Guterres pela educação à la Benavente e o empurrão decisivo para o abismo dado por Lurdes Rodrigues. As universidades não estão esquecidas: com o prestimoso auxílio da Europa e de Bolonha, estão agora afogadas em papelada e burocracia, e pressionadas para conceder o sucesso obrigatório em coisas a que agora se chama licenciaturas.

Tudo isto continuará a sua marcha, com ou sem Coelho e independentemente do texto da Constituição. Sem que o problema premente de como crescer e como tornar viável a economia do país seja tocado. Sem que seja alterada a situação imoral em que uma classe e uma faixa etária se apossaram dos empregos estáveis e decidiram gastar o que não tinham, deixando à geração seguinte o fardo das dívidas, da luta pelo trabalho precário e o aviso de que é melhor precaverem-se para a sobrevivência com uma amostra de reforma depois de trabalharem até aos 70 anos.

As propostas de Coelho são inúteis. Não respondem ao problema principal. O corte nos gastos far-se-á sem elas e mesmo sem Coelho: basta esperar que Sócrates, num dia não muito distante, tenha uma nova revelação de que o mundo voltou a mudar. Talvez até seja obrigado a descobrir que o recurso ao aumento de impostos não altera o caminho para o desastre.

Finalmente, parece que a expressão poética Razões Atendíveis (que a engenharia do nosso direito logo se encarregaria de domesticar) foi lucidamente posta de lado. De facto, mais vale deixá-la livre para título de uma pequena novela, em discreta homenagem a Capote.

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