sábado, junho 28

As palavras e os dias

A ministra espanhola da Igualdade, Bibiana Aído, tem-se notabilizado por deslizes linguísticos (criação do vocábulo "membras"...) e anúncios de iniciativas bizarras (uma linha telefónica para esclarecer homens com propensão para a violência sobre mulheres) .

Na passada quarta feira, porém, Aído fez afirmações perfeitamente razoáveis: que o véu islâmico é um sinal de discriminação das mulheres, que não há razão para que sejam apenas as mulheres a carregar o peso dos símbolos de um passado ou de uma cultura, que nem todas as tradições têm que ser respeitadas. As organizações muçulmanas de Espanha responderam, furiosas, que em Espanha há mais violência de género (deliciosa a adopção por muçulmanos desta linguagem) do que em países islâmicos.

Na quinta feira a vice presidente, De la Vega, veio pôr as coisas no seu lugar, afirmando que o executivo espanhol respeita o véu islâmico.

Ontem, Bibiana vem pôr-se a si própria no seu lugar (de objecto decorativo do governo) declarando que tem todo o respeito pelo véu islâmico.

quinta-feira, junho 26

Redacções

Utentes do tribunal de Santa Maria da Feira parecem ter protestado contra as deficientes instalações agredindo juízes. É o que deduzo desta notícia, onde se lê

Em entrevista a Anibal Rebelo, Conde Rodrigues diz que o que aconteceu foi grave e lamenta o sucedido, mas garante as novas instalações vão estar concluídas, tal como prometido.

Ou é uma nova maneira de reivindicar, que parece ter efeitos imediatos, ou uma nova maneira de redigir, que subverte com audácia o nexo convencional.

Espanha e os Símios

A hipocrisia dos partidos esquerdóides e esverdeados não tem limites. Segundo notícia do Público (Espanha) os símios vão deixar de poder ganhar a vida em Espanha actuando em circos e na televisão. Circos e televisão ficam assim reservados a homens, mulheres e crianças. E a este proteccionismo indecente chamam equiparação dos grandes símios aos humanos em termos de direitos! Espero que a ministra da Igualdade se apresse a intervir. Ficamos a pensar que o que preocupa estes defensores dos direitos de símios é o desembarque nas costas espanholas de chimpanzés e orangotangos sem habilitações profissionais. A mensagem é clara: macaco que queira fazer carreira em Espanha, só com licenciatura ou mestrado.

sexta-feira, junho 20

Exames: a fatal atracção pela poesia

Sempre me custou a compreender a atracção pela poesia nos exames de Português. É que costuma ser logo poesia de alto gabarito. E a verdade é que na prosa também não se faz por menos. Estranha propensão para Camões, Pessoa, Saramago na terra onde tão facilmente se ignora a diferença entre à e ou entre mostras-te e mostraste, para já não falar de esotéricos modos verbais condicionais ou conjuntivos (ainda se dirá assim?).

Esta atracção fatal deve ser uma doença moderna que afecta os burocratas da educação por todo o mundo civilizado. O caso mais cómico sucedeu em Itália há dois dias, onde no exame de Italiano do final do secundário saiu o poema do Nobel Montale:


Ripenso il tuo sorriso, ed è per me un'acqua limpida
scorta per avventura tra le petraie d'un greto,
esiguo specchio in cui guardi un'ellera i suoi corimbi;
e su tutto l'abbraccio d'un bianco cielo quieto.

Codesto è il mio ricordo; non saprei dire, o lontano,
se dal tuo volto s'esprime libera un'anima ingenua,
o vero tu sei dei raminghi che il male del mondo estenua
e recano il loro soffrire con sé come un talismano.

Ma questo posso dirti, che la tua pensata effigie
sommerge i crucci estrosi in un'ondatta di calma,
e che il tuo aspetto s'insinua nella mia memoria grigia
schietto come la cima d'una giovinetta palma...

que na tradução de José Manuel de Vasconcelos (Assírio & Alvim) ficou assim:

Volto a pensar no teu sorriso, e ele é para mim uma água límpida
descoberta por acaso entre os seixos de um leito,
exíguo espelho onde olhas uma hera e os seus corimbos;
e por cima o abraço de um branco céu perfeito.

Esta é a minha recordação; não sei dizer, distância vã,
se no teu rosto se exprime livremente uma alma ingénua,
ou se és um fugitivo que o mal do mundo estenua
levando consigo o sofrimento como um talismã.

Mas isto posso dizer-te, que a tua pensada efígie
submerge os caprichosos desgostos numa onda rasteira,
e que a tua imagem se insinua na minha memória gris
simples como a copa de uma jovem palmeira...

No exame, o testinho era comentado com incidência na visão da realidade pelo poeta, particularmente na visão "da figura feminina e do seu papel salvífico e apaziguante". Os fabricantes do exame não se deram ao trabalho de reparar que non saprei dire, o lontano só poderia ser uma frase dedicada a um homem. É conhecido que o poema evoca o bailarino Boris Kniaseff, por quem Montale manteve uma admiração ambígua. O La Stampa comenta, não percebo se com alívio ou com sarcasmo, que não há aqui nenhum problema porque, tendo sido Kniaseff casado com uma bailarina, não se compreenderia que os peritos do educacional ministério estivessem a querer ocultar algum aspecto embaraçoso da vida do poeta.

A ministra da educação, entretanto, demitiu a responsável da fábrica de exames.

Uma verdade inconveniente, a ópera (de novo)

quarta-feira, junho 18

The End



Passou por aqui, no século XX, e deixou-nos algumas das mais belas cenas de bailado no cinema. Apagou-se ontem, em Los Angeles.

Simetrias cerebrais e orientação sexual

Num artigo publicado recentemente nos Proceedings of the National Academy of Sciences, Ivanka Savic e Per Lindström sustentam ter encontrado relação entre simetrias cerebrais e orientação sexual dos indivíduos. Basicamente, existem semelhanças entre, por um lado, homens heterossexuais e mulheres homossexuais e, por outro, entre homens homossexuais e mulheres heterossexuais. No primeiro caso há ligeira assimetria, que no segundo caso está ausente. Os autores referem ter encontrado também semelhanças para os mesmos grupos a nível de conectividade da amígdala. No resumo do artigo escrevem: The results cannot be primarily ascribed to learned effects, and they suggest a linkage to neurobiological entities.

Aparentemente, o estudo incidiu sobre quatro categorias "estáveis" de orientação sexual. Haverá algo a dizer sobre os indivíduos bissexuais de gradação variável, que devem representar grupos numericamente significativos? E se não há, como encaixar em relação a eles estes resultados? Quanto mais sabemos, mais fica por explicar.

Esta notícia deu origem a discussões interessantes aqui, aqui e aqui.

sexta-feira, junho 13

Zaragoza2


Zaragoza


Igualdade?

A ministra da Igualdade, no país aqui ao lado, tem-se esforçado por manter o bom humor e estimular a criatividade dos cidadãos. Depois do anúncio de um telefone para homens a fim de desenvolver novos modelos de masculinidade e de tentar impingir à Real Academia Espanhola o neologismo progressista miembras (membras), tentou justificar-se com o facto de alguns anglicismos (?), como guay (que actualmente significa cool, baril) já terem entrada no dicionário.

Das muitas reacções do pagode, algumas das quais se podem ler aqui, as mais inocentes são as dos que lhe chamam ministra de IGUAL DA (tanto faz).

Igualdade? A distinguir membros e membras, acentuar a diferença é o que a ideologia feminista está a fazer. Se a ministra quiser mesmo fazer jus ao nome da sua pasta, a sua batalha será pelo fim de todas as declinações de género. Ou, talvez mais simplesmente, impor o inglês como língua oficial em Espanha, acabando ao mesmo tempo com questiúnculas linguísticas autonómicas. Wow! Qué guay!

Guantánamo e as setas

Nas setinhas da última página do PÚBLICO de hoje, Raul Castro está em alta, por ter descoberto que pode haver vantagem em introduzir diferenciação nos salários. Depois de permitir a venda de leitores de dvd e computadores, isto é obra. Se não mexemos rapidamente na legislação laboral, a ilha ainda nos ultrapassa pela direita a curto prazo.

A mesma edição chama à primeira página o escândalo dos prisioneiros de Guantánamo, com uma foto onde manifestantes empunham cartazes com uns nomes árabes. (Claro que nas mesmas setinhas aparece Bush em baixa, mas referir isto é pleonasmo do qual peço desculpa.) De outra Guantánamo, onde está preso em condições terríveis Abel López Pérez por ofensas a Fidel, não se fala. À semelhança dos vários prisioneiros por delitos de consciência e opinião, que escandalizam os jornalistas em muito menor escala. Raúl pode continuar, sem sobressaltos, a escalada da última página do PÚBLICO.

terça-feira, junho 10

O dia do traço identitário

O Fernando Rosas e outros irritados com o lapso de Cavaco e no Chiado há uma estátua de um gajo que escreveu isto:

Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memoria em nós do instincto teu.
Nação porque reincarnaste,
Povo porque resuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste –
Assim se Portugal formou.
Teu ser é como aquella fria
Luz que precede a madrugada,
E é já o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada

"Raça" tem uma conotação política antipática no antigo nome do dia 10 de junho. As palavras adquirem maldição por via das bocas que as pronunciaram. Os tempos presentes inventaram outras maneiras, mais suaves, de reconhecer que não somos meros clones uns dos outros. Quem enche o discurso com etnicidade, traço identitário, autenticidade, fica até muito bem visto pelo cânone do gosto contemporâneo.

O novo regime rebaptizou a data com uma designação anódina. O 10 de junho é simplesmente um feriado que cai bem, sobretudo se está bom tempo. Chamar-lhe dia do traço identitário só iria piorar as coisas.

Nada disto tem a ver com o lapso. Quando uma pessoa envelhece e está sujeita a um ritmo de vida esgotante, e em que a toda a hora lhe fazem perguntas, facilmente se sujeita às traições da memória: falando de improviso, recorda mais facilmente um nome simples aprendido na infância do que um nome improvável a pingar artificialidade. Cavaco precisa de repouso.

segunda-feira, junho 9

Una Scomoda Verità

O Falta de Tempo estreia-se na ópera. Sabendo que o Scala encomendou a Giorgio Battistelli a versão lírica da Inconvenient Truth para a temporada de 2011, quero deixar aqui um modesto contributo. Proponho que Al Gore tenha o seu Leporello com a correspondente ária do catálogo:

Signori, il catalogo è questo
Dei disastri che ha visto il padron mio;
un catalogo egli è che ho fatt'io;
Osservate, leggete con me.
In Europa seicento e quaranta;
In America duecento e trentuno;
Cento in Birmania, nell' Artico novantuno;
Ma in Indonesia son già mille e tre.
V'han fra questi uragani,
grandi pioggie e disgeli,
Tuoni, lampi, siccità,
inondazioni, sommersioni.
V'han disastri d'ogni grado,
D'ogni forma e gravità.

Não cobro nada, embora fosse agradável que Battistelli incluisse um agradecimento no programa de estreia. De resto, nada como citar os clássicos para valorizar uma obra de arte, sobretudo quando nos confrontamos com escassez de meios e de talento.

Quanto ao final, esperemos até 2011 para decidir qual o epílogo com mais impacto: Al Gore a sucumbir sob uma onda de calor ou uma vaga de frio polar.

sábado, junho 7

Repondo a verdade sobre a Europass

Ao contrário do que se lê no PÚBLICO de hoje (p. 4), se o diâmetro é 33,93 cm, o perímetro da circunferência da Europass será qualquer coisa entre 106,57 cm e 106,64 cm.

sexta-feira, junho 6

Questão de moral II

Que bom haver gente com certezas. A dissolução judicial do casamento de um par muçulmano em Lille continua a levantar ondas. Um grupo de 150 deputados de várias tendências políticas do Parlamento Europeu toma posição:

"Nous signataires, considérons que contrairement à la décision du tribunal de grande instance de Lille, la virginité d'une femme n'est pas une qualité essentielle de la personne. Pas plus d'ailleurs que pour un homme. Il s’agit là d’un précédent dangereux qui ne peut que conforter certains fondamentalistes dans leur combat archaïque alors que justement l’un des remparts contre ce fanatisme devrait être le droit."

Em que fundamentalismos estarão a pensar? Atendendo a que aquelas pessoas não gostam de se considerar "racistas", não podiam deixar o fundamentalismo islâmico sozinho no pódio. Que plural tão conveniente!

quarta-feira, junho 4

Fascismo?

Tornou-se comum usar o substandjectivo "fascista" ou o substantivo "fascismo" como simples etiquetas depreciativas que aspiram a encontrar eco fácil e ampla adesão ao que se diz. Uma das espécies mais abundante na Terra, como se sabe, é a dos anti-fascistas. Eles afirmam-se e aumentam de forma exponencial sob acção dos mais inesperados estímulos. A mais recente manifestação do fenómeno, enre nós, é a declaração do Ministro da Ciência e do Ensino Superior ao classificar os comportamentos dos praxistas universitários. Francamente, acho que o uso da palavra é demagógico. Uns brutos, estúpidos, é o que eles são, simplesmente, mas contam com a conivência e até a aprovação de muita gente. Que tempo este em que é mais aceitável chamar a alguém fascista do que estúpido. Só pode ser por conveniência de alimentar o mito do papão útil. Fascismo é uma filosofia política. A triste e simples estupidez não se interessa por ela nem por outras.

segunda-feira, junho 2