sexta-feira, junho 20

Exames: a fatal atracção pela poesia

Sempre me custou a compreender a atracção pela poesia nos exames de Português. É que costuma ser logo poesia de alto gabarito. E a verdade é que na prosa também não se faz por menos. Estranha propensão para Camões, Pessoa, Saramago na terra onde tão facilmente se ignora a diferença entre à e ou entre mostras-te e mostraste, para já não falar de esotéricos modos verbais condicionais ou conjuntivos (ainda se dirá assim?).

Esta atracção fatal deve ser uma doença moderna que afecta os burocratas da educação por todo o mundo civilizado. O caso mais cómico sucedeu em Itália há dois dias, onde no exame de Italiano do final do secundário saiu o poema do Nobel Montale:


Ripenso il tuo sorriso, ed è per me un'acqua limpida
scorta per avventura tra le petraie d'un greto,
esiguo specchio in cui guardi un'ellera i suoi corimbi;
e su tutto l'abbraccio d'un bianco cielo quieto.

Codesto è il mio ricordo; non saprei dire, o lontano,
se dal tuo volto s'esprime libera un'anima ingenua,
o vero tu sei dei raminghi che il male del mondo estenua
e recano il loro soffrire con sé come un talismano.

Ma questo posso dirti, che la tua pensata effigie
sommerge i crucci estrosi in un'ondatta di calma,
e che il tuo aspetto s'insinua nella mia memoria grigia
schietto come la cima d'una giovinetta palma...

que na tradução de José Manuel de Vasconcelos (Assírio & Alvim) ficou assim:

Volto a pensar no teu sorriso, e ele é para mim uma água límpida
descoberta por acaso entre os seixos de um leito,
exíguo espelho onde olhas uma hera e os seus corimbos;
e por cima o abraço de um branco céu perfeito.

Esta é a minha recordação; não sei dizer, distância vã,
se no teu rosto se exprime livremente uma alma ingénua,
ou se és um fugitivo que o mal do mundo estenua
levando consigo o sofrimento como um talismã.

Mas isto posso dizer-te, que a tua pensada efígie
submerge os caprichosos desgostos numa onda rasteira,
e que a tua imagem se insinua na minha memória gris
simples como a copa de uma jovem palmeira...

No exame, o testinho era comentado com incidência na visão da realidade pelo poeta, particularmente na visão "da figura feminina e do seu papel salvífico e apaziguante". Os fabricantes do exame não se deram ao trabalho de reparar que non saprei dire, o lontano só poderia ser uma frase dedicada a um homem. É conhecido que o poema evoca o bailarino Boris Kniaseff, por quem Montale manteve uma admiração ambígua. O La Stampa comenta, não percebo se com alívio ou com sarcasmo, que não há aqui nenhum problema porque, tendo sido Kniaseff casado com uma bailarina, não se compreenderia que os peritos do educacional ministério estivessem a querer ocultar algum aspecto embaraçoso da vida do poeta.

A ministra da educação, entretanto, demitiu a responsável da fábrica de exames.

2 comentários:

Anónimo disse...

testinho ou textinho?

lino disse...

textinho, claro. Ainda bem que me advertis-te. Repetirá-se? Espero que não. :)