domingo, setembro 30

Contribuição de Ahmadinejad para o avanço teórico dos estudos GLBT

A imprensa e as televisões deram alguma atenção às gargalhadas que se seguiram à afirmação do Presidente do Irão na Universidade de Columbia, no início da semana: "No Irão não há homossexuais. Não sei quem lhes disse que tínhamos lá isso."

É fácil rir deste tipo de "bocas", mas isso pode ser compatível com uma visão turva das coisas. Quando perguntaram a Ahmadinejad, nessa sessão, porque executavam homossexuais no Irão, o Presidente respondeu com um desvio, mais ou menos assim: nos Estados Unidos também se executam traficantes de droga, porque eles são maus para a sociedade. E parece que esta justificação mereceu uma ovação da estudantada.

Mas o subproduto mais curioso, embora não o mais surpreendente, da presença de Ahmadinejad na Universidade, é a tomada de posição da Columbia Queer Alliance:

Não temos a pretensão de compreender as múltiplas e diversas experiências de viver com desejos pelo mesmo sexo (repare-se no cuidado com a terminologia) no Irão. Os nossos valores culturais e experiência são diferentes, mas a questão é a mesma: o direito humano essencial de exprimir livremente os desejos.

Além disso, gostaríamos que os media e as organizações estudantis fossem cautelosos com o uso dos termos "gay", "lésbica", "homossexual" para descrever as pessoas que no Irão se envolvem em práticas com o mesmo sexo e sentem desejo pelo mesmo sexo. A construção da orientação sexual como identidade social e política, e todo o inerente vocabulário, são um produto cultural ocidental. Por isso, os estudiosos da sexualidade no Médio Oriente usam em geral termos como "práticas com o mesmo sexo" e "desejo pelo mesmo sexo", como reconhecimento da inadequação da terminologia ocidental. A presença do Presidente Ahmadinejad no campus constituiu um estímulo para reflectirmos sobre várias questões, mas o que mais nos interessa são as complexidades de como a identidade sexual é construída e compreendida em diferentes lugares do mundo.


Compreende-se que não seja dada muita atenção a posições como esta. Seria indelicado para com Ahmadinejad: estes tipos são bem mais cómicos que o Presidente.

sexta-feira, setembro 21

A revista




Por iniciativa da Cãmara de Lisboa, vem aí a recuperação do Parque Mayer com "qualquer coisa de teatro de revista", segundo o PÚBLICO de hoje. É um género que "tem público", dizem eles. Terá? Bem, de acordo com o cartaz dos teatros, só se classificarmos a Música no Coração como revista à portuguesa.

Juntando as peças, no entanto, certas coisas passam a fazer sentido.

Até 1973, no Teatro maria Vitória encenavam-se duas ou três revistas por ano; "Ver, ouvir e calar" teve o seu nome alterado para "Ver, ouvir e falar" em 1974, e daí em diante, foram raros os anos em que mais de uma revista subiu à cena, até à quase extinção da actividade.

As recentes iniciativas do governo para limitar a liberdade de expressão mais não são, certamente, que um convite à criatividade dos autores de revista. Num tempo em que as piadas de sexo se banalizaram, a revista não pode sobreviver sem a aparência de furar uma censura qualquer. Recriando um ambiente com suaves reminiscências de Estado Novo, talvez a revista à portuguesa seja de novo viável. Está em marcha a "criação de novos públicos", que muitos tanto apreciam referir. Afinal é tudo pela arte.

(Foto: http://germana-teatro.blogspot.com/)

domingo, setembro 16

O não debate

É uma óptima ideia que o debate entre Mendes e Menezes vá sendo sucessivamente adiado. Poupa-se uma hora de bocejo a quem cair na armadilha de assistir. Antes um documentário no Discovery sobre a essência do murro de Scolari, ou um filme porno com as personagens vestidas.

sábado, setembro 15

Vila Real de Santo António

Soube-se há dias, num jornal e numa televisão, que dezenas de doentes portugueses estão a receber tratamento oftalmológico em Cuba, pago pela câmara municipal de Vila Real de Santo António. É notícia com significado porque começa por ter como pano de fundo a ineficácia do nosso serviço nacional de saúde. Ainda bem que aquelas pessoas viram os seus problemas de visão resolvidos, e não ponho em dúvida a qualidade do tratamento, tanto mais que neste caso há em jogo uma mais valia publicitária para o regime da ilha. Também admito que não havia alternativas num raio de 8000 quilómetros. De qualquer modo, não há operações a cataratas grátis. Para já, sabemos que a autarquia transferiu 50 mil euros para, como é descrito no boletim municipal, reconstrução de um Parque Infantil e respectiva Creche. A referida Creche, situa-se no Pólo Cientifico de Engenharia
Genética e Biotecnológica da cidade de Playa e destina-se a
acolher os filhos dos trabalhadores.

Como parece óbvio que a autarquia pagou também pelo menos as viagens, seria interessante fazer o balanço financeiro do acordo. Admito que se tenha conseguido um bom preço, caso em que conviria realizar um protocolo do SNS com o sistema de saúde cubano, abrangendo muito mais municípios e muito mais especialidades. Se não, quando me reformar vou procurar casa em Vila Real de Santo António.

sexta-feira, setembro 14

Não souberam a tempo

O Human Rights Watch está preocupado com o fecho de Guantanamo. Parece que a administração americana está a mandar para casa alguns detidos sem garantias de que vão continuar a ter o tratamento de que dispunham na ilha. O caso dos tunisinos Abdullah al-Hajji Ben Amor e Lofti Lagha tem sido muito comentado na imprensa: em face da sua situação actual na Tunísia, dizem que se soubessem o que os esperava ter-se-iam oposto à libertação.

quarta-feira, setembro 12

Uma bomba amiga do ambiente



A notícia surgiu ontem ao fim do dia. A Rússia de Putin executou o teste da sua nova e revolucionária bomba: com menor carga explosiva, consegue duplicar o poder destruidor da MOAB dos EEUU (a "mãe de todas as bombas"; esta é o "pai"). Uma vitória da nanotecnologia. Graças a uma altíssima temperatura e a uma onda de choque ultra-sónica, tem um poder de destruição devastador. Tudo limpo, sem radiactividade nem danos para o ambiente. Um general russo comentou que a Rússia estava assim apta a combater o terrorismo internacional em qualquer situação e em qualquer região.

A Rússia comemorou assim, com discreta conspicuidade, o aniversário do 11/9.

segunda-feira, setembro 10

A vida real





(Numa sexta feira, num intercidades da linha do norte)
-Oi, então, mais um fim de semana?
-É verdade. Um esticão até Setúbal.
-Onde é que trabalhas agora?
-Em Vitória. O ano passado era em Pamplona mas já deixei.
-...
-Ando farto desta merda. Às vezes passa-me pela cabeça arranjar maneira de ficar no fundo de desemprego.
-?
-...
-Olha, não te metas nisso que os gajos andam em cima e lixas-te. Não há nada como dormir descansado.
-O patrão agora já não está lá, é o filho que manda. Se fosse com o pai... O filho é só roubar.
-...
-Quando posso também o lixo, um dia não fui e não deram por nada, pagaram tudo.
-...
-Hoje trabalhei até ao meio dia. Tinha a mala pronta.
-E até quando ficas lá em baixo?
-Domingo levanto-me à um quarto prás quatro, chego lá tomo banho e começo a trabalhar lá prás 10, à noite desforro-me a dormir.
-Então e o Leandro continua lá?
-Esse arranjou uma hérnia discal, nem pode ser operado.
-Então e está lá a fazer o quê?
-Não sei, está de baixa. Não pode fazer força.
-Mas pode conduzir?
-Todo esticado. Cá por mim não deve estar lá muito tempo. Deve vir de lá despachado de alguma maneira.
-Ainda faltam duas horas para Lisboa.
-É verdade. Vou dormir um bocado.

domingo, setembro 2

Minneapolis story

Já muito se escreveu sobre o escândalo que levou o republicano Larry Craig a anunciar a sua demissão. Dos jornais à internet, não faltam opiniões sobre o caso para todos os gostos e até está disponível uma reconstituição do episódio em video.

Não há ponta por onde se pegue para simpatizar com Craig: parece que o homem não se notabilizou por nada em particular e, tendo tomado posições que sistematicamente contrariam a luta pelos direitos de pessoas homossexuais, a primeira tentação diante do que lhe aconteceu é dizer que "é bem feito".

A historieta tem, no entanto, aspectos muito curiosos. Não admira: a invenção mais rica é a da própria realidade. Por exemplo, ficamos a saber que este simpático e promissor polícia, que obteve o ano passado um mestrado em justiça, chefia e educação, parece ter agora como missão ficar sentado numa retrete de aeroporto à caça de homossexuais à procura de sexo no lavabo. Parece que já prendeu 12 este verão. Uma eficácia notável, só explicada, certamente, pela alta qualificação académica do rapaz.

Nada surpreendente é o facto de sites "gay", como este, rejubilarem com a divulgação do caso. Dado que nesses sites (próximos das correntes ditas "liberais" nos EEUU) não há economiza de apelos à satisfação sexual pura e simples, há pouca dúvida sobre o que realmente os excita: o facto de Craig ser republicano. Não lhes interessa, neste particular, que o homem tenha sido atingido por via de um comportamento de características "gay" e, certamente, por ser figura pública (dos outros 11 não ouvimos falar).

Finalmente, a questão da hipocrisia de Craig, abundantemente apontada a dedo pelos observadores, é talvez o aspecto mais ambíguo e ilusório de tudo o que rodeia o episódio. Quando Craig afirma, no discurso em que anuncia a demissão, que não é "gay", provavelmente não mente. Provavelmente ama a mulher e a família. Provavelmente é apenas um de uma multidão de homens cuja vida heterossexual não é de fachada mas que frequentemente são tentados por uma variação e tentam satisfazer-se com uma companhia rápida e anónima. A sua posição e o modo e o lugar que escolheu tramaram-no. Provavelmente o homem nem sequer é incoerente, lá por ter votado contra os casamentos homossexuais: a simples ideia de viver com outro homem pode ser-lhe repugnante.

Lawrence Durrell explicava, na abertura do seu "Quarteto", que há mais de cinco sexos e só o grego popular conseguia diferenciá-los. Os tristes vocábulos e siglas modernas, politicamente correctos ou não, inventados para descrever os sexos ou, talvez, novas bandeiras de luta, vão apenas encobrindo no seu esquematismo pobre uma complexidade de que sabemos pouco.