Há já alguns anos que a entoação dos locutores de rádio, ao fazer a leitura de noticiários, me chama a atenção. Não consigo definir com precisão quando se operou a mudança: há quinze anos, talvez? Refiro-me a uma forma de entoar, de colocar uma "música" e a pontuação, ao longo das frases, que se tornou uniforme e previsível, com muito poucas excepções. O fenómeno denuncia, provavelmente, a existência de um padrão no ensino do jornalismo, que deve ter tido uma explosão em anos recentes. Isto é ainda mais conspícuo na leitura de comentários aos pequenos filmes que ilustram notícias nos jornais da televisão. Aí, a música é invariavelmente a mesma, com uma estranha combinação de notas no final das frases. O público provavelmente nem se aperceberá disso, dado que a repetição transforma o insólito em norma. Suspeito de que a entoação que nos servem foi aprendida por imitação dos locutores britânicos (ouçam a bbc e a skynews e comparem). Julgo que o tipo de entoação que resulta em inglês não é o melhor para a língua portuguesa.
É claro que fenómenos deste tipo tendem a passar despercebidos. É curioso observar uma banalização semelhante, na entoação do discurso falado, em declarações públicas dos políticos. Com atenção, podemos até detectar que estes tendem a adquirir e a repetir a entoação característica do leader. Isso foi muito evidente no PCP, quando ouvíamos na boca de outros dirigentes não só o discurso, mas também a música, de Cunhal. Ainda há vestígios desse modo de colocar a voz em Jerónimo de Sousa. No PS, também muitos se exprimiam com a música de Soares. Os exemplos podem ser multiplicados fora da política. Claro que, de vez em quando, surgem excepções. Poderemos conjecturar inúmeras razões para que a entoação do discurso de uma dada figura política não seja objecto de imitação. Eu dou três exemplos de uma música própria que não tem seguidores: Santana, Portas, Sócrates.
Um caso também interessante é o do teatro, do cinema, ou da ficção na tv. Muita gente pode achar, por exemplo, que nas novelas brasileiras os actores falam de uma maneira "natural". Ora, eles falam é todos da mesma maneira: fechando os olhos, nem os distinguimos. Isso denuncia a existência de uma escola de actores que é levada muito a sério, e que tende a uniformizar o desempenho. O mesmo sucedia no cinema clássico americano e o mesmo sucede no actual. Com o poder de indústrias massificadoras, a imposição às palavras de determinadas "músicas" leva-nos a confundir o artificial com o espontâneo. No limite, a ilusão torna-se realidade: talvez no discurso da nossa "vida real" já imitemos, inconscientemente, o que ouvimos na tv e no cinema.
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1 comentário:
Sobre a entoação jornalística, uma nota: essa entoação está, invariavelmente, a assassinar a pontuação, o que reforça a ideia de que com "música" reconhecível já não se liga ao conteúdo...
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