O ímpeto moralizador do presidente Hollande acaba de proporcionar ao mundo um inesperado episódio de voyeurismo. Talvez Hollande tenha dado também um pontapé na parede, já agora.
O que está em causa é mais do que a simples constatação de que se pode ser rico e de esquerda -- coisa que toda a gente sabe e não merece qualquer observação. É ambíguo o conceito de "rico", e é complicada a leitura dos dados, porque, mesmo se nos limitarmos ao inferno fiscal das contas declaradas, há esposos e esposas, filhos e filhas, decisões familiares. O problema é estarmos a descobrir que se pode estar na carreira política, em certos casos há anos, e andar perto da indigência. Está bem que sairam do armário 20% de milionários entre os ministros, mas que pensar dos que não declaram quase nada e têm na conta corrente umas parcas centenas de euros (ministro do interior, por exemplo), tão pouco que até nos aflige imaginar como chegarão ao fim do mês? A ministra da justiça declara 3 bicicletas mas tem outros bens que se vejam; já o do trabalho tem uns apartamentos mas anda de Clio como eu (uma coisa indigna, bem reprovada pelo nosso bom Assis). Outros não têm nada de nada (ministra da ecologia) ou têm tão pouco ou estão de tal modo endividados que, calculado o saldo, fico a pensar na sorte que tenho em não estar na pele deles.
O assunto é muito sério. Se isto continua, há o risco de os franceses pensarem que estão a ser governados por alguns insolventes. E a querer que se investigue a hipótese de haver empobrecimento ilícito.
Sem ironias, e a julgar pelo grosso dos comentários nos sítios dos jornais, os franceses não engoliram bem o resultado da operação moralizadora, que acaba por parecer um devio de atenção do escândalo recente que, de resto, todo este coming-out não evitaria.
terça-feira, abril 16
sábado, abril 13
Palavras estropiadas
Há palavras com pouca sorte. Quando certas classes de utilizadores as descobriram e as integraram nos seus dicionários, perderam significado e passaram a falar de si próprias. Integradas em construções feias ou à beira da incorrecção sintática, tal foi o destino de locuções que alimentam o jornalês e o comentarês:
no contexto
contextualizar
significativo
estar em cima da mesa
estruturante
não se compadecer com
Um dos casos mais interessantes é a frequente substituição do dizer ou afirmar por outros verbos mais contundentes:
X acusa
X arrasa
X alerta
O verbio alertar, um dos mais mal tratados, surge com frequência seguido (mal) de que. É incrível a quantidade de alertas que por aí proliferam. Tantos, que obviamente não podemos concentrar-nos em nenhum: andar em permenente estado de alerta é o mesmo que que nada. Ainda ontem o PÚBLICO deixava dois. O verbo sofreu uma subtil alteração semântica, porque a sua utilização é predominante quando o conteúdo do alerta está de acordo com aquilo para que se adivinha que o próprio jornalista gostaria de alertar. Seguro alerta, Soares alerta, Sampaio alerta, Cavaco alerta, Passos alerta... o Google tem muito para contar.
Outra aquisição do comentarês, trazida à cena nos anos recentes, é a narrativa. É bonita palavra e tem ressonância muito culta, com provas dadas na crítica literária, na História e na Sociologia. Suporta-se em doses parcimoniosas, homeopáticas. O novo comentador da RTP1, desastradamente, arrasou-a (agora sim, é caso para dizer). Nos tempos mais próximos ninguém usará o infeliz vocábulo sem uma desculpa prévia ou sem receio de algum ridículo.
no contexto
contextualizar
significativo
estar em cima da mesa
estruturante
não se compadecer com
Um dos casos mais interessantes é a frequente substituição do dizer ou afirmar por outros verbos mais contundentes:
X acusa
X arrasa
X alerta
O verbio alertar, um dos mais mal tratados, surge com frequência seguido (mal) de que. É incrível a quantidade de alertas que por aí proliferam. Tantos, que obviamente não podemos concentrar-nos em nenhum: andar em permenente estado de alerta é o mesmo que que nada. Ainda ontem o PÚBLICO deixava dois. O verbo sofreu uma subtil alteração semântica, porque a sua utilização é predominante quando o conteúdo do alerta está de acordo com aquilo para que se adivinha que o próprio jornalista gostaria de alertar. Seguro alerta, Soares alerta, Sampaio alerta, Cavaco alerta, Passos alerta... o Google tem muito para contar.
Outra aquisição do comentarês, trazida à cena nos anos recentes, é a narrativa. É bonita palavra e tem ressonância muito culta, com provas dadas na crítica literária, na História e na Sociologia. Suporta-se em doses parcimoniosas, homeopáticas. O novo comentador da RTP1, desastradamente, arrasou-a (agora sim, é caso para dizer). Nos tempos mais próximos ninguém usará o infeliz vocábulo sem uma desculpa prévia ou sem receio de algum ridículo.
domingo, abril 7
Perigoso e fascinante
Coreia do Norte: um rapazola com um cabeleireiro caprichoso posa para o fotógrafo ora a ler mapas, ora a olhar pelos binóculos. Tem mísseis e armas atómicas, e uma tia e um tio que, para além do negócio dos hamburgers, têm experiência em jogos perigosos.
Espanha: depois de Bárcenas e dos ERES de Andaluzia, o caso Urdangarin acaba por atingir a infanta, que um juiz veio com todo o cuidado reabilitar como não idiota, apontando-a como presumível implicada que percebia e colaborava. Torres, o sócio queimado, defende-se como pode lançando cocktails que explodem na casa irreal. A última série anunciada de e-mails prontos a sair contém umas porcarias que poderão levar a infanta a libertar-se pelo divórcio.
França: um ministro das finanças desvia uns milhões e falsifica uma declaração fiscal. Há quanto tempo estavam ao corrente as figuras gradas do poder? Isto está bonito.
Portugal: o estilhaço de Relvas, logo nas vésperas da estreia daquele comentador que só tem uma conta bancária, mais parecia uma partida desagradável -- Relvas imola-se para provocar desconforto e irritação no comentador, a quem falar de licenciaturas deverá provocar alergia. (Isto é a brincar: os factos mostram como entre Relvas e novo comentador o plano é de harmonia.) A crise aberta ontem vem em auxílio do comentador, que assim poderá concentrar-se no que chamará assuntos que verdadeiramente interessam. Entretanto, os riscos no futuro próximo são mais que muitos. E para além dos riscos antevê-se um massacre para os ouvidos: a reposição prematura em cena do discurso eleitoralista fora do prazo, essa forma de insuportável poluição sonora com que as mesmas figuras de sempre se estarão a preparar para nos dar música requentada. Tirem-nos do filme!
Espanha: depois de Bárcenas e dos ERES de Andaluzia, o caso Urdangarin acaba por atingir a infanta, que um juiz veio com todo o cuidado reabilitar como não idiota, apontando-a como presumível implicada que percebia e colaborava. Torres, o sócio queimado, defende-se como pode lançando cocktails que explodem na casa irreal. A última série anunciada de e-mails prontos a sair contém umas porcarias que poderão levar a infanta a libertar-se pelo divórcio.
França: um ministro das finanças desvia uns milhões e falsifica uma declaração fiscal. Há quanto tempo estavam ao corrente as figuras gradas do poder? Isto está bonito.
Portugal: o estilhaço de Relvas, logo nas vésperas da estreia daquele comentador que só tem uma conta bancária, mais parecia uma partida desagradável -- Relvas imola-se para provocar desconforto e irritação no comentador, a quem falar de licenciaturas deverá provocar alergia. (Isto é a brincar: os factos mostram como entre Relvas e novo comentador o plano é de harmonia.) A crise aberta ontem vem em auxílio do comentador, que assim poderá concentrar-se no que chamará assuntos que verdadeiramente interessam. Entretanto, os riscos no futuro próximo são mais que muitos. E para além dos riscos antevê-se um massacre para os ouvidos: a reposição prematura em cena do discurso eleitoralista fora do prazo, essa forma de insuportável poluição sonora com que as mesmas figuras de sempre se estarão a preparar para nos dar música requentada. Tirem-nos do filme!
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