Se o espectáculo das eleições anteriores não deixou saudades, o das próximas é já insuportável. Já teria sido tempo de o parlamento tomar as iniciativas de mudança para que não fôssemos obrigados à tortura do longo período de caça ao voto (campanha e pré) quando é necessário substituir os representantes dos partidos.
Com abundância de discursos repetitivos, demagogia, mentiras, inépcia política e algumas espertezas, a penosa função convoca como subprodutos uma ou outra questão relativamente interessante, com destaque para o aparente mistério da resiliência do PS, que se apresenta nas sondagens como um dos possíveis vencedores.
Mistério pequeno, sim. Por um lado, as intervenções frouxas ou desastradas do principal adversário na contenda chegam para determinar a opção de muitos votantes pelo mal que já conhecem e que passam a encarar como menor. Mas antes de tudo não se pode ignorar que permeia a atmosfera mental tuguesa uma adesão afectiva, inconsciente, tornada estrutural, aos ideários subscritos por organizações catalogadas como "esquerda", e paralelamente uma rejeição visceral do que é descrito como "direita". Na verdade estas etiquetas obsoletas e inapropriadas funcionam quase como o equivalente da distinção entre o bem e o mal. O engano começa, naturalmente, nas palavras.
É particularmente curiosa a atitude das classes com maior grau de instrução em relação a estas categorias. Na verdade, um sub-sintoma interessante daquele estado mental é a associação que parte apreciável da "inteligentsia" faz entre orientação política e "cultura". Se entre as classes baixa e média-baixa será o receio do "ainda pior" a determinar certa orientação de voto, entre as classes instruídas a simples ideia de ajudar a eleger, digamos, o actual principal adversário do PM, causa alergias e calafrios. Porquê? Porque a "direita" está, aos olhos destes cidadãos, pejada de bimbos desprezíveis. Desde violinos de Chopin até ao lapso na citação de Sartre, passando pelas confusões sobre cantos dos Lusíadas ou sobre More e Mann, os pequeninos incidentes da vida parecem dar-lhes razão. Aquelas pessoas da "direita" são assim mesmo: encenam mal ou não se dão ao trabalho de encenar. Exibem sem pudor o gosto suburbano plasmado nos nomes que dão às vivendas ou nas massamás que habitam. Os "inteligentes" (isto é, os que entre linhas lêem) desprezam-nos por isso. Com o vício de serem sempre avaliados pelos "pares", irrompe neles urticária só de pensarem em dar apoio a tão desprezível gente, com a qual não se misturariam.
Quantos dos que se riram do Santana, no entanto, estariam informados sobre o catálogo das obras de Chopin? E porquê parar em Chopin, ou nos Lusíadas? Porque não recuar a Ockeghem, ou ir até Szymanowski, aos trios com piano de Shostakovich, à Recherche? Quantos dos que escarneceram por procuração estariam em condições de fazer o comentário apropriado sem teleponto?
É certo que não há deslizes destes, pelo menos tão notórios, entre os notáveis de "esquerda". Em primeiro lugar, eles cuidam muito mais da imagem e não brincam em serviço. O actual PM é exímio na pose. Cita Ortega y Gasset, refere Camões e Pessoa com a convicção de quem leu, e pode perfeitamente ter lido. Jorge Sampaio começou pelo Cavaleiro Andante, descobriu as virtudes do Frei Luís de Sousa e leu a Guerra e Paz e o Crime e Castigo, o que é perfeitamente verosímil. De Soares também não se duvida: com certeza leu muito e terá o "bom gosto" nas artes que a "inteligentsia" estima. O modo como se referem a uns e a outros revela que no imaginário dos intelectuais bem pensantes o quadro é mais ou menos assim: em casa de Soares, Sampaio e quiçá Sócrates escuta-se Pergolesi ou Mahler e há sempre um romance ou ensaio no sofá; em casa de PPCoelho ou Cavaco roda no gira-discos alguma música das Doce e na mesa de centro empilham-se as revistas de caras que só lemos com relutância no consultório.
Claro que cultura não é só literatura e música. Guterres sabia de Física e Matemática; Cavaco é professor de Economia. Tudo sopesado, que vantagens podemos aduzir de termos eleito tais pessoas? Tivemos mais sorte com os perfis de cultura mais humanista ou com os perfis mais técnicos? Olhando para o resultado, tivemos azar com todas.
Suspeito que a nossa "inteligentsia" pode estar equivocada no simplismo do quadro, como esteve no de outros. Afinal, há quinze anos que ela achava natural, por exemplo, que os universitários portugueses ganhassem tanto ou mais que os seus colegas de alguns países europeus, sem que o país tivesse que se dar à maçada de fabricar os popós e as máquinas de lavar que todo o mundo compra - até nós, a crédito.
Finalmente, de tanta suposta cultura e mesmo sem sair do âmbito restrito dela, não se colhe grande fruto. Há alguma ideia notável nos suporíferos discursos de Sampaio, por exemplo? Há tiradas infelizes, como a do défice para lá da vida (não foi isto que ele disse, não) ou simples truismos inócuos. Recentemente, citou uma frase de Pessoa (citação que Sócrates tem usado repetidamente) para condenação do pessimismo e elevação da auto-estima, como agora se diz. "Uma nação que habitualmente pense mal de si mesma..." é uma citação inadequada: se estivéssemos a pensar mal de nós mesmos não acharíamos tão natural manter e merecer a vidinha bem acima das posses. Além disso, para apelar à vulgaridade do "pensamento positivo" não precisamos de invocar intelectuais nem poetas: as cartomantes e redactoras de zodíacos fazem-no com mais competência.
Pessoa disse do "escol" que ele se distinguia por ter a capacidade de criticar com ideias próprias, mas que podem não ser fundamentais. "A tragédia mental de Portugal presente é que (...) o nosso escol é estruturalmente provinciano." "O síndroma provinciano compreende, pelo menos (...) o entusiasmo e a admiração pelo progresso e pela modernidade(...)" "Os civilizados criam o progresso, (...), a modernidade; por isso não lhes atribuem importância de maior. (...) Quem não produz é que admira a produção." Quantas oportunidades perdidas para fazer umas citações menos redondas.
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