sábado, junho 19

Literaturas

No dia da morte de José Saramago completaram-se 70 anos sobre o célebre apelo, a partir da BBC em Londres, do então general a título temporário Charles de Gaulle. No breve discurso, afirmava:

Cette guerre n'est pas limitée au territoire malheureux de notre pays. Cette guerre n'est pas tranchée par la bataille de France. Cette guerre est une guerre mondiale. Toutes les fautes, tous les retards, toutes les souffrances, n'empêchent pas qu'il y a, dans l'univers, tous les moyens nécessaires pour écraser un jour nos ennemis. Foudroyés aujourd'hui par la force mécanique, nous pourrons vaincre dans l'avenir par une force mécanique supérieure. Le destin du monde est là.

Era um tempo em que o discurso político tinha qualidade literária. E, quem sabe, produzido pelo próprio orador, não por assessores treinados em argumentos para teleponto. Nas Memórias, escreveu de Gaulle, sobre a sua aclamação em 1944:

Je vais donc, ému et tranquille, au milieu de l'exultation indicible de la foule, sous la tempête des voix qui font retentir mon nom, tâchant, à mesure, de poser mes regards sur chaque flot de cette marée afin que la vue de tous ait pu entrer dans mes yeux, élevant et abaissant les bras pour répondre aux acclamations.

Não é Proust mas não desmerece o culto da língua. E sobre Pétain:

Mais, hélas ! les années par-dessous l’enveloppe, avaient rongé son caractère. L’âge le livrait aux manœuvres de gens habiles à se couvrir de sa majestueuse lassitude. La vieillesse est un naufrage. Pour que rien ne nous fût épargné, la vieillesse du maréchal Pétain allait s’identifier avec le naufrage de la France.


De Gaulle acaba por ter, em 2010, uma afinidade com Saramago: por decisão do ministério da educação francês, a sua obra vai ser lida no liceu, nos programas terminais de estudos literários. Os sindicatos e associações de professores já se levantam em protesto, atribuindo à medida intenções de propaganda ideológica, invocando que a qualidade literária do texto não está à altura dos estudos em questão. Alguns vultos das letras contrariam esta visão: é obra de um escritor, sim. Corre uma petição para que se acabe com a confusão entre história e literatura. Muitas personalidades da inteligência francesa vêem ao palco dar as suas opiniões a favor ou contra: há depoimentos para todos os gostos nas páginas do Libération, do Figaro, do Le Parisien.


Os franceses que resolvam a questão. Saudavelmente, não me recordo de alguém entre nós ter posto em causa o estudo do Memorial do Convento nas escolas secundárias. O que para mim é um mistério. Não por qualquer razão ideológica, que estaria condenada ao fracasso perante a cultura, dita progressista, dominante, mas por razões literárias: causa-me um certo estupor que se dê a ler uma obra sofisticada, que recria a organização frásica da língua com um propósito encantatório, hipnotisante, perfeitamente sucedido, à massa de alunos que saem das escolas confundindo à com e pensando que tomas-te é o passado de um verbo. A idade avançada não tem grandes encantos, mas proporcionou-me a saída da escola a tempo de ler o Memorial só por prazer, sem ter que me preocupar em classificar o narrador como homodiegético ou heterodiegético ou reflectir sobre se o verdadeiro protagonista do romance é o povo trabalhador.







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