sexta-feira, dezembro 26

O Papa, os homens, as mulheres e todos os outros

O Vaticano, e o Papa em pessoa, têm estado nos últimos dias preocupadíssimos com a existência de pessoas homossexuais. Ao ouvi-los, parece que vem aí o fim do mundo, que temos outra ameaça comparável ao alegado aquecimento global, e que se trata de algo tão grave que supera em importância outros males, reais ou imaginários.

Primeiro, a recusa de alinhar na ONU com o projecto de resolução para despenalizar a homossexualidade. Agora, na mensagem de natal à Cúria, Bento XVI vem dizer, com uma subtileza desajeitada, que os comportamentos sexuais que não se encaixam no figurino homem-mulher põem em risco a sobrevivência da espécie.

A posição do Vaticano em relação à proposta de despenalização é chocante. No entanto, nestas andanças de ONU há muita poeira deitada para os olhos de todos. A própria proposta não parece isenta de culpas. Num momento em que actos homossexuais são castigados com a pena de morte em vários países, um texto que nas entrelinhas vai tão longe quanto abrir a porta ao reconhecimento do "casamento gay" padece certamente de falta de bom senso. Por outro lado, se o pressuposto é que os estados não devem meter-se na vida sexual dos indivíduos, é incompreensível que a proposta tivesse um carácter tão polarizado e fosse clamorosamente omissa sobre a punição (por vezes também com a morte) do adultério (exceptuando, claro, o adultério gay). Talvez porque já se sabe que a ONU, quando tem de escolher entre "direitos humanos" e "sharia", tem preferências nítidas.

O discurso recente do Papa é mais problemático. Provavelmente, a sua tirada etológica é das mais infelizes que já proferiu. Um homem que nos habituou a um certo rigor intelectual aparece agora a fazer afirmações que roçam o disparate primário.

Bento XVI tem-se assumido como um lutador contra certo discurso politicamente correcto que se apoia nos neo-"saberes" pós modernos, e em particular nas teorias de "género". No assunto em questão, a razão que o acompanha quando desdenha as invenções de género fabricadas pelos académicos, logo lhe foge ao recusar-se a olhar para a realidade. Os académicos naõ inventaram nada, de facto, que não estivesse já incluído na imensa fábrica de Deus. Eles querem classificar tudo, para além do masculino e feminino tradicionais, em quatro letrinhas apenas (LGBT). O Papa prefere apenas as duas categorias mais evidentes. Neste particular, o Papa subestima o gosto de Deus pela complexidade e pelo não óbvio. Ora há de certeza mais do que seis sexos, até porque é necessário incluir também a auto-mutilação sexual a que se costuma chamar abstinência. As ciências biológicas e sociais não dão, por enquanto, respostas satisfatórias para o papel da diversidade das inclinações e práticas sexuais, mas o facto é que elas sempre existiram, parecem em grande medida independentes de vontades individuais, e não vão desaparecer por invocação de uma escritura sagrada qualquer. Por muito que custe a Bento XVI, os gays parecem mais reais do que Deus. O Papa certamente nem ignora certas histórias sobre pinguins .

Recusando a evidência biológica ao mesmo tempo que tenta invocar uma biologia supostamente simples, o Papa, como outros líderes de grupos religiosos, assume um papel corrector (biológico?) de natureza voluntarista, atacando o indivíduo em nome da espécie, e tentando, desesperada e inutilmente, minimizar a grande ironia praticada por Deus ao expôr o sexo como puro prazer com fins diferentes dos da reprodução.


APÊNDICE:

O discurso do Papa em 22 de Dezembro está aqui.

Já agora, do pouco que se vai sabendo, eis alguns destaques soltos:

1. Wilson and Rahman, "Born Gay: The Psychobiology of Sexual Orientation", 2005. Os autores sublinham que a investigação no sentido de identificar factores psico-sociais no desenvolvimento da orientação sexual tem resultados praticamente nulos. Põem a ênfase nos resultados mais fiáveis onde se considera o papel da genética, da evolução, das hormonas, da ordem de nascimento, da neurobiologia e do desenvolvimento infantil.

2. Savin-Williams and Ream, Prevalence and Stability of Sexual Orientation Components During Adolescence and Young Adulthood, Arch. Sex. Behav. (2007), 385-394: estudo do predomínio e estabilidade de uma dada orientação sexual, distinguindo "atracção romântica" pelo mesmo sexo e "comportamento não heterossexual". A predominância da não-heterossexualidade depende do sexo biológico e é mais alta nas mulheres e também quando se considera exclusivamente a "atracção romântica". Existe migração ao longo do tempo de entre comportamento e atracção pelo mesmo sexo e comportamento e atracção pelo sexo oposto (em ambos os sentidos). A estabilidade é maior no caso de comportamento e atracção heterossexual. A instabilidade do comportamento e atracção homossexual põe em causa dados da investigação nesta área. A análise dos dados levanta questões críticas como: o comportamento ou a simples atracção de tipo homossexual com qualquer grau de relevo deve ser classificado como não-heterossexualidade? Em que grau se deve manifestar determinado tipo de inclinação para classificar os tipos de orientação sexual? A resposta à pergunta "quantos gays existem?" depende da componente em foco (comportamento, atracção, identidade) e do sexo biológico.

3. Gobrodgge et al, Homosexual Mating Preferences from an Evolutionary Perspective: Sexual Selection Theory Revisited, Arch. Sex. Behav. (2007), 717-723: comparando as preferências etárias de homens heterossexuais e homens homossexuais na procura de parceiros quer para sexo esporádico, quer para relações longas, não se encontraram diferenças significativas, invalidando determinadas conjecturas baseadas na teoria da selecção natural.

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