terça-feira, janeiro 1

O amor nos tempos de internet (14)


De regresso a Lisboa, parei para descansar na área de serviço de Grândola. Estava a sorver o café quando tocou o telemóvel: o Eduardo. “Pai, a mãe foi assaltada de esticão.” Pobre Margarida, pensei, já não bastava o azar que teve comigo.
Oh! Mas onde aconteceu isso?
A mãe e a Micky. Na rua do tio Ricardo. Almoçaram lá e iam entrar para o carro da Micky. Fugiram-lhes com as carteiras e arrancaram a pulseira à mãe.
Mas ela ficou mal?
Foi só o susto e um braço dorido, mas nada de cuidado. A desgraçada da Micky é que caiu ao chão e fez um hematoma na cabeça. Fui com ela ao hospital e acho que está sob controle.
A que horas foi isso?
Eram três e meia.
Mas como foi?
Dois tipos saíram de um carro, tiraram-lhes as malas e arrancaram logo no mesmo carro.
Já foram à polícia?
Eu vou agora com a mãe. Ela amanhã precisa do seguro do carro, ficou sem documentos.
Está bem, diz-lhe que não se preocupe, alguma coisa que for preciso eu trato logo de manhã.

Antes de voltar para o carro fui à casa de banho. Em frente do espelho, um homem alto e magro, aparentando ter mais ou menos a minha idade, chorava a soluços soltos. Perturbado com a minha entrada, baixou-se para o lavatório e começou a enxaguar o rosto e os olhos sob o jorro da torneira. Para minorar o efeito da minha intromissão, fechei-me num gabinete. Os soluços pararam logo e pouco depois ouvi o secador de mãos e o homem a sair. Saí também rapidamente e ainda vi o homem a entrar num Audi 8. Esperei que ele arrancasse e passasse diante do meu carro: no lugar do passageiro, uma mulher que me pareceu não ter mais que uns trinta anos gesticulava e discutia com ele aos berros. Entrei na auto-estrada atrás deles e por alguns minutos mantive-me atrás do Audi, intrigado e fascinado com o drama desconhecido de que tinha presenciado um sinal.

Porquê ou por quem teria chorado o homem? Que privação ou dor enorme lhe teria posto os olhos no estado em que o surpreendi no lavabo? Inevitavelmente, comparei-me com ele. Não me lembro de chorar mesmo depois do abandono pela Sofia, mas alguma coisa dentro de mim tinha passado por estados equivalentes aos olhos marejados do desconhecido. De modo diferente, mas igualmente dilacerante, tinha sofrido quando provoquei a minha separação da Margarida por causa da Sofia. Os momentos mais agudos já tinham passado para o lugar das memórias, mas a instabilidade da minha vida era suficiente para tornar penosas essas evocações. Por momentos, revi-me no homem que chorava: podia ser eu, no quarto ou quinto dia depois de a Sofia sair de casa, terminado o efeito anestésico que se segue ao momento das grandes perdas, com a dor a desabar em cheio, parecendo entornar fluidos amargos nas entranhas do corpo. Podia ser eu dentro de dias.

Tinha combinado com a Rita que nos reencontraríamos na segunda-feira: fui esperá-la às oito depois do trabalho e jantámos ali perto num restaurante com vista para o rio. O ambiente foi quase tenso, as palavras poucas e difíceis. A meio do jantar telefonou outra vez o Eduardo para dizer que precisava que lhe depositasse 500 euros e perguntar se podia levá-lo ao comboio no dia seguinte. Tinham-lhe marcado duas entrevistas em Coimbra, talvez uma possibilidade de estágio estivesse à vista, na empresa do Artur, e podia haver despesas inesperadas. “A que horas vais?” “Tem que ser o das oito, pai.” “Está bem, passo aí às sete e meia”. Sentia-me desfeito mas não podia negar-me. “Pode ser bom, mas ele tem que ter cuidado”, comentou a Rita. Cuidado? perguntei, intrigado. Claro que tem que ter cuidado. Ela sossegou-me: Não ligues.

As coisas azedaram inesperadamente na manhã seguinte. A Rita saiu cedo comigo, passámos em Alvalade e deixámos o Eduardo na gare do Oriente. “Pai, tens aqui uns papéis, vê lá se é importante”, disse ele ao sair. “Aqui no banco de trás.” Diabo do rapaz, pensei eu. “Boa viagem e dá notícias logo." A Rita tinha tomado conta do maço de papéis: notas de trabalho para a empresa e alguns recibos. “Olha, uma conta de restaurante em Lagos?” perguntou com ar de caso. “Não me disseste que ias a Lagos…”
É verdade, fui almoçar com um grande amigo do tempo de escola. A última vez que nos vimos ainda eu estava com a Margarida. Também se separou, há seis meses.
Ela preencheu com amargura e irritação um sorriso que significava: quem é que tu pensas que enganas?
“Ó amor, não te maces a inventar tantos pormenores. Quem comeu o arroz de marisco, tu ou ela?” comentou a Rita com ironia triste.
Oh, Rita, protestei. Não há nenhuma ela dentro dessa conta.
“Mas então porque não me disseste? Deves ter tido qualquer coisa mais interessante para fazer no passeio a Lagos.”
Rita, desculpa, foi uma estupidez da minha parte, as minhas idas e vindas são tão frequentes, não teria interesse para ti.
“Quer dizer que quando me ligaste no domingo depois de almoço estavas em Lagos, porque não disseste?”
Tens razão, não sei o que me passou pela cabeça para não dizer. De qualquer modo ias ficar com o teu pai no domingo, não tinha importância nenhuma.
“Não percebo é o que queres de mim”, disse ela em tom de desabafo desinteressado, “nem porque é que eu estou contigo, mas vou deixar de estar.”
Tomámos o pequeno almoço num café da 24 de Julho, sem trocar uma palavra, e eu segui para o escritório no Blue Garden. O novo seguro tinha de ser anunciado antes do Natal e era urgente pôr os meus problemas pessoais em banho-maria.

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