quarta-feira, agosto 30

Naguib Mahfouz (1911-2006)

Escolhemos uma mesa sob um eucalipto no cafezinho na margem do Nilo, onde o sol da tarde perseguia sem força o frio cortante do inverno no Cairo. Evitando sempre os meus olhos, ela disse "Não devia ter vindo".
"Mas vieste", respondi, tranquilizante. "Está decidido."
"Nada está decidido, acredita."
Olhei-a. Tinha que aceitar o jogo. "Tenho a certeza que por estares aqui..."
"Não. Simplesmente não quis ficar sozinha com as tuas cartas."
"Não há nada de novo nas minhas cartas."
"Mas escreveste-as a alguém que não existe." Toquei-lhe a mão sobre a mesa como que a provar que ela existia. Retirou a mão. "Vieram com quatro anos de atraso."
"Mas falam-te de coisas que não têm a ver com o tempo nem com o lugar."
"Não vês que me sinto sem forças e desgraçada?"
"Também eu. Os nossos amigos olham-me como um espião. Eu vejo-me a mim próprio como um renegado e um traidor. Só te tenho a ti."
"Grande consolo."
"Não me resta mais nada. Excepto a loucura ou a morte."
Suspirou como se doesse. "Traí-o na minha cabeça há muito tempo."
"Não. Foste um exemplo de lealdade falsa."
"É outra maneira de dizer."
"Sofremos sem um motivo real", expliquei, irritado, "Essa é que é a tragédia."

(Miramar, 1967)

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