segunda-feira, setembro 8

A vida de Julie segundo um escrevedor genial


Antes de mais, acreditem que sou apreciador incondicional de Balzac. Mas quando este verão me pus a ler a Mulher de Trinta Anos não sabia que iria acabar por abandoná-la antes do fim, terá ela os seus cinquenta e tais. Quem conhece o magnífico Tia Julia y el escribidor, de Vargas Llosa, perceberá porque é que a evocação dessa novela fica presente na mente do leitor à medida que avança na Mulher de Trinta. Mas não nos iludamos: Balzac tem um humor subtil e não é daqueles que tem graça sem saber.

Mas, por muito boa que seja a escrita, achei que já tinha aguentado guinadas e piruetas bastantes. Vamos ver. A primeira, suave, dá-se quando somos informados de que Victor, com quem Julie casa por amor aos vintes contra a vontade do pai, afinal não presta. Não lhe dá valor, é distante e ainda por cima vaidoso, colérico e um mulherengo infiel. A rapariga é infeliz até dizer chega. Apesar de não haver informação prévia nesse sentido, quem sou eu para duvidar. Gente medíocre é o que há mais por aí. As longas ausências do marido e um tal Lord Grenville a rondar a porta permitem o eclodir de uma nova paixão às escondidas. Balzac trata-os de “aimants” mas informa que não chegam ao conhecimento carnal. De resto, quando durante uma ausência de Victor isso poderia estar quase a suceder, o marido volta a casa de repente e o Lord refugia-se no parapeito exterior de uma janela para salvar a honra de Julie. Sabemos duas páginas a seguir, pela fala de uma personagem secundária, que o desgraçado terá morrido de resfriado. Victor nunca chega a suspeitar de nada: não acha a mulher suficientemente boa para incendiar corações.

A morte de Grenville vai marcar os anos seguintes da vida de Julie com o estigma da culpa. A filha, Hélène, não é fonte de alegria. Julie não lhe consegue dar ternura. Mas eis que entra em cena Charles de Vandenesse, em trânsito para o lugar de embaixador em Nápoles. Depois de comparações entre o casamento e a prostituição, um romance platónico de Charles com Julie avança e recua. Chega um momento em que as coisas aquecem a ponto de Charles, que decide afinal ficar em Paris, tocar a mão de Julie e a beijar na face, mas eis que de novo Victor entra inesperadamente. Diga-se de passagem que Victor não percebe nada do que vê, e pensa que Charles desiste do lugar de embaixador para não perder a oportunidade de caçar a herança de um tio bem colocado. (É burro, coitado, não há nada a fazer, pensa Julie.)

O capítulo seguinte abre com uma cena que o narrador descreve na primeira pessoa. Somos levados a presenciar o efusivo encontro de Julie e Charles num belo enquadramento do Paris moderno. Há duas crianças: Hélène e Charles, irmão mais novo e com traços físicos diferentes. Charles é loiro como o outro Charles. (Como o marido não percebe nada, teve a lata de pôr à criança o nome do amante, pensa o leitor.) A menina recusa-se a brincar com ele e a mãe enfurece-se com ela. Quando a mãe se despede do amante, Hélène afasta-se e o irmão pergunta-lhe porque é que não vem despedir-se do seu bom amigo. Hélène lança-lhe “o mais horrível dos esgares que jamais se viu nos olhos de uma criança” e empurra o menino, que desaparece na corrente do riacho.

Não ficamos a saber como terá Julie explicado lá em casa a funesta ocorrência, o que daria para um outro romance. A acção avança três anos, estando Julie e Charles a jantar com um notário e mortinhos para ele se ir embora para aproveitarem a ausência de Victor (um paradigma situacional), que fora ao teatro com os filhos (Hélène e Gustave). Mas antes da saída do notário eis que de novo, inesperadamente, entra Victor com os miúdos. A peça de teatro andava à volta de um drama numa torrente, e Hélène, pelas razões que o leitor sabe mas Victor não, tinha-se sentido muito mal.

Passam mais alguns anos e estamos na casa de campo de Victor e Julie, que agora têm mais dois filhos, Abel e Moina. É noite de natal e um aflito toca à porta: o homem está a ser perseguido pela gendarmerie e Victor dá-lhe guarida por duas horas no sótão. Os gendarmes chegam, dizem que há um assassino em fuga e, enquanto Victor fala com eles e garante que não viu ninguém suspeito, Julie manda Hélène ver quem é o estranho. Daí a pouco Hélène e o assassino descem à sala e anunciam nem mais nem menos que vão fugir juntos.

Logo a seguir ficamos a saber que isto foi apenas um aviso do destino. Um desastre financeiro arrasta a ruina de Victor, que é obrigado a emigrar para reconstituir a sua fortuna. Seis anos depois regressa a França num navio espanhol. Na aproximação a Bordéus o barco é abordado por um navio pirata. Victor escapa de ser lançado ao mar porque o capitão do navio pirata o reconhece: é nem mais nem menos que o assassino com quem Hélène fugira. Victor reencontra no navio pirata nem mais nem menos que a filha Hélène, no posto de mulher do capitão, enfeitiçada pelo companheiro como na noite de natal em que se tinham conhecido. O pai despede-se da filha enquanto o barco onde tinha viajado se consome em chamas atiçadas com garrafas de rum.

Meses depois de ter recuperado a fortuna, Victor morre, cansado da vida. Julie leva a filha Moina a viajar aos Pirinéus. Hospedam-se num hotel onde não conseguem dormir à noite, porque no quarto ao lado uma criança geme sem parar. No dia seguinte vão ver o que se passa: a hóspede é nem mais nem menos do que Hélène, e a criança que geme o único filho que conseguira salvar de um naufrágio. À vista de Julie e Moina, morre o menino e morre Hélène. Esta deixa à irmã um aviso: não se encontra a felicidade fora das leis. Cerrados os olhos de Hélène, Julie explica melhor: uma menina não encontra nunca a felicidade numa vida romanesca, fora das ideias com que foi educada e, sobretudo, longe da mãe.

No início da última parte (“Velhice de uma mãe culpada”) sabemos que Gustave e Abel faleceram e que Julie, embora parca em afectos, fez o seu melhor para garantir o futuro tranquilo de Moina. Este instante de tranquilidade relativa, não sei se fugaz, pareceu-me uma boa altura para o leitor se retirar. Nem mais nem menos.

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