Antes de mais, acreditem que sou apreciador incondicional de
Balzac. Mas quando este verão me pus a ler a Mulher de Trinta Anos não sabia
que iria acabar por abandoná-la antes do fim, terá ela os seus cinquenta e
tais. Quem conhece o magnífico Tia Julia y el escribidor, de Vargas Llosa, perceberá
porque é que a evocação dessa novela fica presente na mente do leitor à medida
que avança na Mulher de Trinta. Mas não nos iludamos: Balzac tem um humor
subtil e não é daqueles que tem graça sem saber.
Mas, por muito boa que seja a escrita, achei que já tinha
aguentado guinadas e piruetas bastantes. Vamos ver. A primeira, suave, dá-se
quando somos informados de que Victor, com quem Julie casa por amor aos vintes
contra a vontade do pai, afinal não presta. Não lhe dá valor, é distante e
ainda por cima vaidoso, colérico e um mulherengo infiel. A rapariga é infeliz
até dizer chega. Apesar de não haver informação prévia nesse sentido, quem sou
eu para duvidar. Gente medíocre é o que há mais por aí. As longas ausências do
marido e um tal Lord Grenville a rondar a porta permitem o eclodir de uma nova paixão
às escondidas. Balzac trata-os de “aimants” mas informa que não chegam ao
conhecimento carnal. De resto, quando durante uma ausência de Victor isso
poderia estar quase a suceder, o marido volta a casa de repente e o Lord
refugia-se no parapeito exterior de uma janela para salvar a honra de Julie.
Sabemos duas páginas a seguir, pela fala de uma personagem secundária, que o
desgraçado terá morrido de resfriado. Victor nunca chega a suspeitar de nada:
não acha a mulher suficientemente boa para incendiar corações.
A morte de Grenville vai marcar os anos seguintes da vida de
Julie com o estigma da culpa. A filha, Hélène, não é fonte de alegria. Julie
não lhe consegue dar ternura. Mas eis que entra em cena Charles de Vandenesse,
em trânsito para o lugar de embaixador em Nápoles. Depois de comparações entre
o casamento e a prostituição, um romance platónico de Charles com Julie avança
e recua. Chega um momento em que as coisas aquecem a ponto de Charles, que
decide afinal ficar em Paris, tocar a mão de Julie e a beijar na face, mas eis
que de novo Victor entra inesperadamente. Diga-se de passagem que Victor não
percebe nada do que vê, e pensa que Charles desiste do lugar de embaixador para
não perder a oportunidade de caçar a herança de um tio bem colocado. (É burro,
coitado, não há nada a fazer, pensa Julie.)
O capítulo seguinte abre com uma cena que o narrador
descreve na primeira pessoa. Somos levados a presenciar o efusivo encontro de
Julie e Charles num belo enquadramento do Paris moderno. Há duas crianças:
Hélène e Charles, irmão mais novo e com traços físicos diferentes. Charles é
loiro como o outro Charles. (Como o marido não percebe nada, teve a lata de pôr
à criança o nome do amante, pensa o leitor.) A menina recusa-se a brincar com
ele e a mãe enfurece-se com ela. Quando a mãe se despede do amante, Hélène afasta-se
e o irmão pergunta-lhe porque é que não vem despedir-se do seu bom amigo.
Hélène lança-lhe “o mais horrível dos esgares que jamais se viu nos olhos de
uma criança” e empurra o menino, que desaparece na corrente do riacho.
Não ficamos a saber como terá Julie explicado lá em casa a
funesta ocorrência, o que daria para um outro romance. A acção avança três
anos, estando Julie e Charles a jantar com um notário e mortinhos para ele se
ir embora para aproveitarem a ausência de Victor (um paradigma situacional),
que fora ao teatro com os filhos (Hélène e Gustave). Mas antes da saída do
notário eis que de novo, inesperadamente, entra Victor com os miúdos. A peça de
teatro andava à volta de um drama numa torrente, e Hélène, pelas razões que o
leitor sabe mas Victor não, tinha-se sentido muito mal.
Passam mais alguns anos e estamos na casa de campo de Victor
e Julie, que agora têm mais dois filhos, Abel e Moina. É noite de natal e um
aflito toca à porta: o homem está a ser perseguido pela gendarmerie e Victor
dá-lhe guarida por duas horas no sótão. Os gendarmes chegam, dizem que há um
assassino em fuga e, enquanto Victor fala com eles e garante que não viu
ninguém suspeito, Julie manda Hélène ver quem é o estranho. Daí a pouco Hélène
e o assassino descem à sala e anunciam nem mais nem menos que vão fugir juntos.
Logo a seguir ficamos a saber que isto foi apenas um aviso
do destino. Um desastre financeiro arrasta a ruina de Victor, que é obrigado a
emigrar para reconstituir a sua fortuna. Seis anos depois regressa a França num
navio espanhol. Na aproximação a Bordéus o barco é abordado por um navio
pirata. Victor escapa de ser lançado ao mar porque o capitão do navio pirata o
reconhece: é nem mais nem menos que o assassino com quem Hélène fugira. Victor
reencontra no navio pirata nem mais nem menos que a filha Hélène, no posto de
mulher do capitão, enfeitiçada pelo companheiro como na noite de natal em que
se tinham conhecido. O pai despede-se da filha enquanto o barco onde tinha
viajado se consome em chamas atiçadas com garrafas de rum.
Meses depois de ter recuperado a fortuna, Victor morre,
cansado da vida. Julie leva a filha Moina a viajar aos Pirinéus. Hospedam-se
num hotel onde não conseguem dormir à noite, porque no quarto ao lado uma
criança geme sem parar. No dia seguinte vão ver o que se passa: a hóspede é nem
mais nem menos do que Hélène, e a criança que geme o único filho que conseguira
salvar de um naufrágio. À vista de Julie e Moina, morre o menino e morre
Hélène. Esta deixa à irmã um aviso: não se encontra a felicidade fora das leis.
Cerrados os olhos de Hélène, Julie explica melhor: uma menina não encontra
nunca a felicidade numa vida romanesca, fora das ideias com que foi educada e,
sobretudo, longe da mãe.
No início da última parte (“Velhice de uma mãe culpada”)
sabemos que Gustave e Abel faleceram e que Julie, embora parca em afectos, fez
o seu melhor para garantir o futuro tranquilo de Moina. Este instante de
tranquilidade relativa, não sei se fugaz, pareceu-me uma boa altura para o leitor
se retirar. Nem mais nem menos.
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