segunda-feira, maio 27

A solidão limitada dos números primos

Yitang Zhang é o nome de um professor de matemática até agora sem pergaminhos. Ensina Cálculo na Universidade de Hampshire. Dedicou os últimos quatro anos a trabalhar sobre a conjectura dos "primos gémeos". Obteve um resultado importante nessa direcção, já aceite para publicação no prestigiado Annals of Mathematics. Fazendo uso dos instrumentos legados por investigadores que se tinham interessado pelo problema, Y. Zhang demonstrou que existe uma infinidade de pares de números primos tais que a diferença entre os dois elementos do par não excede 70 000 000.

Uma das circunstâncias mais interessantes desta história é o facto de se tratar de alguém praticamente desconhecido na investigação em matemática. Provavelmente afastado das grandes redes de financiamento. Talento, trabalho e disponibilidade de entrega a um problema foram os ingredientes do sucesso.

Está tudo muito bem contado aqui por Erica Klarreich.

quarta-feira, maio 22

A deriva da fé

Nicolas Maduro disse ontem, em frente de Paulo Portas, que Portugal e a Venezuela estão no mesmo continente, separados só pelo Caribe e o Atlântico. A frase soltou apupos, gargalhadas e também uma reacção de defesa, no twitter e em variados sites.

A gaffe, se o é, é pouco interessante em si: facilmente se interpreta no sentido figurado de uma cooperação desejada. Interessante é o conjunto das reacções, sintoma de uma Venezuela dividida e da antipatia de que o presidente actualmente goza (um pouco como sucede entre nós relativamente a quase tudo o que mexe na área do actual governo). Mas isto é o que dá as pessoas revelarem conversas havidas com pássaros.

Curioso também é constatar a que ponto chega a fé dos defensores. Embarcando numa discussão inútil e pateta, um chavista dá aqui a sua interpretação em comentário: Maduro estaria a referir-se à deriva dos continentes e a um tempo em que Portugal e Venezuela estavam unidos. Não há dúvida de que a fé move placas.

segunda-feira, maio 20

Wharol e latas no Colombo


O Colombo tem uma mostra de arte. São umas coisas de Andy Wharol, penduradas no interior de uma curiosa estrutura construida a partir do empilhamento de latas cilíndricas reluzentes. É caso para dizer, sem publicidade nem sarcasmos, que o continente é mais surpreendente do que o conteúdo.

Wharol é um autor sobrevalorizado mas merece-o, tal como o público que o entronizou o merece (e eu não estou de fora). Para sossego da cabeça, gosta-se de olhar para uns quadros ou outros coisos sem ambições de complexidade e espessura, que permitem soltar um "ah! que giro" mesmo que olhá-los mais de cinco minutos se torne uma seca. Além disso, ele teve a Fábrica, a Nico e uns filmes também giros e provocadores. Na sua pintura, a banalidade ganhou o direito ao pódio e a máscara de uma profundidade naif. O talento de Wharol foi mais o de saber mover-se no ambiente certo no tempo certo, parasitando o star system e as vedetas pop vestidas de underground e reencenadas numa decadência glamourosa, produzindo uma arte de olhar fixo no próprio umbigo mas harmoniosamente entrosada nos gostos da élite popular na transição dos anos 60-70, e criando um nicho de requinte soft nesses gostos.

São giras, as latas empilhadas no Colombo.

quinta-feira, maio 16

Titulações

Diverte-me a arrumação que a imprensa faz das notícias. No El Mundo de hoje, o relato de que Maradona apedrejou jornalistas na auto-estrada vem na secção "Desporto". No Público de há dois dias, a mastectomia* de Jolie aparece na secção "Cultura".

* não deveriam escrever mastetomia? Que sorte a das palavras menos ditas, escapam à foice do acordo.

segunda-feira, maio 13

Olhares sobre Terrugem

Terrugem é uma freguesia de Elvas com cerca de 1200 habitantes. A informação disponível refere a existência de actividade económica baseada em artesanato e peles. É também ponto de atracção turística e gastronómica, com um restaurante bem classificado pela clientela (A Bolota), num espaço que também possui piscinas e campos de ténis. Naturalmente, os espanhóis são parte importante da afluência.

Está-se bem em Terrugem, com certeza. Está-se bem na Bolota. Qualquer par de horas passado em contemplação da paisagem e da luz do Alentejo, na entrega aos sabores voluptuosos da comida, vai direitinho para a zona das memórias doces.

Pode-se, no entanto, contemplar com olhares distintos. Há pelo menos o olhar encantado, enlevado de Joaquim Folgado e a visão interrogativa de Juan Luis Martínez-Carande, que se confessa surpreendido, ou talvez não, pela grande piscina em construção, com suporte de fundos públicos, em pleno 2013. Parece que o investimento valerá 600 mil euros. A não ser que fechem as piscinas de Elvas para desviar banhistas, o Juan Luis terá razão: vamos ter os banhos mais caros do mundo.

domingo, maio 12

Os saberes online e os nomes dos bois

Quer estudar Circuitos e Electrónica, Saúde e Ambiente, Introdução à Mecânica, Estatística, Filosofia Política? Agora tem à disposição cursos das melhores universidades (MIT, Harvard...) inteiramente grátis. Chamam-se MOOCs (massive open online courses).

Este prodígio do nosso tempo não é do agrado de todos. Os professores do departamento de Filosofia da Universidade de San José, pressionados para utilizar um MOOC de M. Sandel, professor de Harvard, não ficaram nada entusiasmados com a ideia. Reagiram publicamente com uma carta a Sandel, também ela aberta, como os novos cursos. As razões dos professores são mais do que previsíveis: não se põe em causa a competência de Sandel mas, por um lado, há em San José corpo docente igualmente competente e, por outro, os estudantes tiram melhor partido do contacto com professores vivos na sala de aula. Cursos enlatados serão um passo no caminho do pensamento monolítico e uniformizado, que é o contrário do que numa universidade se pretende. A generalizar-se a adopção dos enlatados, acabará por criar-se uma divisão das universidades em duas categorias: uma, para os privilegiados que podem pagar aulas presenciais e beneficiar da constante discussão e actualização científica, e outra menos valorizada, para os que só podem aceder a uma tele-escola de conteúdos petrificados.

Os signatários sabem perfeitamente quais são as intenções e o que está em risco, e convidam a que os bois sejam chamados pelos nomes. Invocam-se benefícios pedagógicos quando se faz contratos de utilização de MOOCs, mas não se consulta o departamento nem as coordenações de curso? Está-se, sim, a reestruturar a universidade, pressionada para admitir cada vez mais estudantes e privilegiar a formação em cursos de maior empregabilidade. A opção parece clara: precinda-se dos professores, essa mão de obra tão cara, e comece-se, para já, pela área de Humanidades.

Os argumentos têm sentido e são razoáveis, mas é impossível não ler também, na carta aberta, a preocupação com a perda de lugares bem remunerados. Todos os bois merecem nomes. O mundo é um lugar onde sucedem coisas bastante desagradáveis, como fazer face aos custos elevados de certos bens.