O PÚBLICO de ontem revelava que nos meios jurídicos se debate com ardor a constitucionalidade da redução dos salários na função pública. Há até um conhecido causídico a quem parece que não é coisa constitucional e assim o escreveu, a pedido de um grupo de professores, num texto a que se dá o nome de parecer. Parece aos envolvidos na discussão que conflituam o direito ao salário, os princípios da igualdade e da confiança, e o da proibição do retrocesso, com o princípio da urgência e o da necessidade de atenuar o défice. O princípio da igualdade parece espezinhado porque os cortes atingem apenas trabalhadores do estado.
A adesão aos formalismos da lei é também um modo de negar a realidade. A quem estas coisas parecem, qualquer ideia de que não há pagamentos com os cofres vazios deve parecer simplesmente inadmissível, por não ser mencionada nos únicos textos que conhecem de trás para a frente.
O mesmo lapso selectivo afecta as classes altas ou médio-altas da nossa função pública, desagradadas com os cortes que as vão atingir. Nem só o governo e o primeiro ministro têm vivido em estado de recusa da realidade, mentindo a si mesmos e aos outros. Uns minutos de reflexão permitiriam antecipar, pelo menos desde há dois anos, que os salários teriam que descer. Não falo sequer dos salários escandalosos de altos cargos, que excedem os dos salários congéneres em paises mais ricos e com situação económica mais sólida. Basta pensar num exemplo concreto, menos dado a controvérsias, para nos apercebermos da ilusão em que temos vivido: os professores universitários são pagos em Portugal, desde os governos Guterres, ao mesmo nível do que sucede em paises como a França ou a Alemanha. Isto tem sido visto como natural, ao mesmo tempo que se aceita que a generalidade das profissões no sector privado se aguente com vencimentos em proporção com o estado das economias. O voluntarismo estatal quis fazer figura sem fazer as contas. Entretanto, é na Alemanha e na França que se fabricam os popós que nós conduzimos e as máquinas de lavar que adornam as casas que possuimos em excesso.
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