domingo, outubro 14

Doris Lessing sobre o politicamente correcto como legado do Comunismo

Apesar da morte do Comunismo, os modos de pensar a que ele deu origem ou força ainda dominam as nossas vidas. Nem todos são tão evidentes (...) como o politicamente correcto.

Primeiro ponto: a linguagem. (...)Há uma gíria Comunista reconhecível em cada frase. Pouca gente na Europa não brincou com "passos concretos", "contradições", "interpenetração dos opostos" e por aí fora.

A primeira vez que vi que os mortíferos slogans tinham asas para voar para bem longe das suas origens foi num artigo do Times em 1950. "A manifestação de sábado foi uma prova irrefutável de que a situação concreta..." Palavras confinadas à esquerda (...) tinham adquirido utilização comum e, juntamente com elas, as ideias. Encontravam-se artigos na imprensa conservadora e liberal que eram marxistas, mas os autores não o sabiam. Mas há um aspecto desta herança muito mais difícil de ver.

(...) O Izvestia, o Pravda e muitos outros jornais comunistas eram escritos numa linguagem que parecia concebida para encher o maior espaço possível sem dizer nada. (...) Mas a herança da linguagem morta e vazia nos dias de hoje encontra-se nas universidades, particularmente em áreas da sociologia e da psicologia.


O segundo ponto liga-se com o primeiro. (...) A todos os escritores se pergunta: "Acha que um escritor devia...?" A pergunta tem sempre a ver com uma posição política e por detrás da pergunta assume-se que todos os escritores deveriam agir do mesmo modo (...) Outro exemplo é o do "compromisso", tão em moda não há muito tempo. Fulano de tal é um ecritor comprometido?

Ao "compromisso" veio seguir-se o "alertar das consciências". (...) Aqueles cujas consciências são alertadas podem receber a informação de que necessitam desesperadamente (...) mas o processo quase sempre significa que o receptor só tem acesso a propaganda aprovada pelo instrutor.


A exigência de que um trabalho da imaginação, uma história, tenha que ser "acerca de" alguma coisa vem do pensamento comunista e, mais atrás ainda, do pensamento religioso (...)

O politicamente correcto tem um lado bom? Sim, porque nos leva a reexaminar atitudes (...) O problema é que em todos os movimentos populares a franja lunática rapidamente deixa de ser franja; é a cauda que passa a abanar o cão. Por cada um que está a tentar uma análise séria e cuidada, há 20 agitadores cuja real motivação é o poder sobre os outros (...)

Tenho a certeza de que milhões de pessoas, a quem o tapete do Comunismo foi retirado, estão desvairadamente à procura, sem o saberem, de outro dogma.


Escrito em 1992 e republicado ontem no New York Times. Via The reference frame.

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