sexta-feira, dezembro 30

Perguntas do povo

Previsivelmente, no espaço Vox populi do PÚBLICO-LOCAL LISBOA de hoje, os quatro interrogados reagem em tom de não à demolição da casa onde morreu Garrett. Se o jornalista quisesse ter tido uma iniciativa menos primária poderia ter perguntado, com mais pertinência: Lembra-se da frase com que começa o Frei Luís de Sousa? ou, para contemporizar com os "novos saberes" e não envergonhar os inúmeros admiradores de Garrett recentemente surgidos entre nós, Acha que o título da novela ninguém como tu se pode considerar uma referência ao final do 2º acto?

Coragem e clarividência

Depois de Soares, Alegre faz a ronda das capelinhas. Ontem, na mesquita de Lisboa, disse-se preocupado com as recentes declarações do presidente do Irão a respeito de Israel e, na sinagoga de Lisboa, declarou que "é preciso fazer uma diferença entre a religião muçulmana e as derivas". Ou terei ouvido mal e troquei os dois lugares? Adivinhem. Já agora, atendendo a que lhe ofereceram um exemplar do Corão, e sabendo-se que a religião assume, por definição, um papel totalizante em todos os aspectos da vida numa sociedade islâmica, esperemos que venha explicar o que entende por "derivas" e se, em sua opinião, os actuais dirigentes do Irão se estão a afastar dos ensinamentos corânicos.

terça-feira, dezembro 27

O amor nos tempos de internet (3)

O encontro com a Margarida P. foi combinado para um domingo à tarde no átrio do Museu Gulbenkian. Já tinha recebido uma fotografia dela por e-mail e eu tinha retribuído, de modo que seria fácil reconhecer-nos. Quando a vi, percebi imediatamente porque é que na foto que me enviara aparecia quase de perfil: tinha uma borbulhagem extensa no lado esquerdo do rosto. Dermatite, explicou ela depois nervosamente, estava em tratamento. Engoli mentalmente em seco enguanto pronunciava o Olá, prazer da praxe. Mas fiquei logo a pensar que a foto devia ter alguns anos, pois a Margarida que estava na minha frente era razoavelmente diferente da Margarida de 35 anos que me tinha sido e-revelada.

Quer ver alguma exposição ou tomamos qualquer coisa? perguntei com delicadeza e formalidade. Margarida preferiu um passeio para tomar um sumo e partimos no meu carro para as docas. Em frente do rio fui assaltado por uma tristeza irreprimível: a memória dos momentos que ali passara com a Sofia e a crueza da humilhação que a vida parecia agora querer-me infligir fizeram-me sentir o mais desprezível dos homens. Já há tanto tempo que não vinha aqui, disse a Margarida entre muitas outras coisas que eu não ouvi. Estou separada há cinco anos e tenho saído muito pouco ultimamente. Falou-me da sua triste profissão (professora de história no ensino básico) e contou-me histórias da criançada enquanto ria muito. Contou-me também como quase ia caindo, inocentemente, no assédio de uma colega logo após a separação, até que um amigo gay lhe tinha aberto os olhos e lhe explicou que a outra era obviamente lésbica. Algumas das histórias até me podiam arrancar um sorriso noutras circunstâncias, mas se me dava vontade de alguma coisa era de chorar. Decorrida uma hora, eu sabia que este primeiro encontro com a Margarida era também o último. Ainda tenho que passar pela seguradora, disse. Até aos domingos me fazem trabalhar.

A minha cara deve ter-me denunciado o suficiente, porque Margarida despediu-se como quem sabia que o caso estava encerrado.

Com a Matilde as coisas foram diferentes logo de início, porque a distância obrigou a um período de muitos dias em que apenas contactámos por telefone. Comprei até um cartão de outro operador para poder falar com ela mais longamente sem me arruinar.

segunda-feira, dezembro 26

A liberdade de expressão e a Europa

Dois casos recentes de intelectuais levados ao tribunal por delito de opinião põem em evidência as contradições europeias no que respeita à liberdade de expressão. Orhan Pamuk, escritor turco que denuncia o genocídio de arménios, corre o risco de ser condenado a prisão; a UE pressiona a Turquia no sentido de deixar Pamuk em paz. Na Áustria, David Irving, historiador britânico com pouco crédito fora de alguns círculos fascistoides, está preso por pôr em causa o holocausto. Sobre este caso, a UE, ou os intelectuais que habitualmente gostam de se fazer ouvir, não dizem uma palavra. As parcialidades ditadas pelo politicamente correcto pagam-se caro, pois retiram a autoridade moral indispensável para defender os valores em que acreditamos. E, no caso da liberdade de expressão, trata-se de uma questão de princípio, um tudo ou nada, como bem o expõe Brendan O'Neill neste artigo.

domingo, dezembro 25

Estorinha sem importância: Morales, Zapatero e a COPE

Há dias, um humorista da COPE (cadeia de rádio espanhola ligada à hierarquia católica) fez-se passar por Zapatero numa chamada telefónica, radiodifundida, ao recém eleito Evo Morales. Em animadíssima conversa e entre outras "bocas", "Zapatero" convidou Morales a fazer a sua primeira visita oficial a Espanha. Morales não detectou o logro. Agora o governo de Espanha exige à COPE desculpas públicas e certamente se esforçará por não ficar por aqui: com a discussão do estatuto da Catalunha a começar em breve, um pouco de censura viria bem a calhar.
O telefonema emitido na COPE pode ser escutado aqui.

Post scriptum: Sobre Morales e o contexto da sua eleição vale a pena ler este artigo de Álvaro Vargas Llosa.

sábado, dezembro 24

quarta-feira, dezembro 21

O nível da fala

“Ele não tem cultura...”
“Ele foi a essas reuniões mas eu sei como é que as coisas se passaram... tenho uns amigos que me contaram...”

Com este nível de discurso, Soares alinha pelas falas de personagens intriguistas de novelas da tvi, género ninguém como tu. Frases feitas e com insinuações maldosas pelo meio, ao gosto de plateias sem padrão de exigência. Soares está consciente disso. Sabe que pode disparar o discurso da “cultura” precisamente porque os destinatários da sua mensagem não sabem bem o que isso é.

Impregnação

O progresso tecnológico e a agressividade da indústria electrónica de entretenimento transformaram a música numa presença permanente, invasora e obsessiva nas nossas vidas. Há música no carro, no escritório, no supermercado, e até no elevador e no átrio de certos edifícios. Eu não digo que isto me desagrada: a possibilidade de ouvir Mozart, Shostakovich ou Cole Porter, em condições de facilidade e qualidade que ainda há alguns anos não existiam, é uma coisa boa. Não podendo deixar de pensar que a música não é - ou foi - feita para estar assim tão presente (não me refiro, claro está, ao lixo musical para consumo de massas que se escuta, por exemplo, em 99% do tempo de antena das rádios e tvs) tenho que considerar fantásticas as possibilidades que a época presente me dá em termos de fruição musical. Eu posso, por exemplo, passar dias a escutar uma Paixão de Bach ou de Penderecki até conhecer e prever todos os sons que vêm a seguir. Diferentemente de épocas em que só conhecíamos as obras em espectáculo público, agora a música pode entrar em nós. Essa absorção profunda aumenta o prazer da escuta.

No entanto, tudo tem os seus limites. Não gosto que me imponham um menu musical específico num período determinado, seja a que pretexto for. Recordo que as comemorações do bicentenário da morte de Mozart em 1991 me causaram um enjoo que determinou um abandono acentuado da audição de obras do compositor. Norman Lebrecht, detractor de Mozart, num artigo provocatório mas não destituído de sentido, adverte que vamos ter mais do mesmo em 2006, a pretexto do 250º aniversário do nascimento.

Nota: Em Portugal, o governo pretende substituir 1/4 do lixo musical que passa na rádio por lixo nacional. No Irão (estamos num outro plano, atenção!) também se pretende eliminar toda a música que não promova valores islâmicos; e até aí isso parece difícil de concretizar. A electrónica vencerá.

sábado, dezembro 17

O Português de plástico

Reparem nesta beleza de prosa de Paulo Feytor Pinto (Asssociação de Professores de Português) em carta ao Director no PÚBLICO de hoje:

"Não nos parece aceitável que se considere que um exame nacional seja o instrumento que garante que todo o programa é ensinado (...) e (...) que mais programa é aprendido (...) Melhores garantias parece-nos poderem ser dadas pela diversificação dos instrumentos de avaliação (...), por uma formação inicial adequada baseada em perfis pré-definidos, por uma formação contínua de professores regulada pela avaliação das suas necessidades e pelo impacto dessa formação nas aprendizagens dos alunos, pela selecção de manuais complementada pela sua certificação prévia, pelo cumprimento dos programas, por melhores equipamentos (...)"

Duma coisa não parece haver dúvidas: o signatário teve uma formação baseada num molde pré-fabricado, pois para escrever este discurso basta ir aos manuais do pedagogicamente correcto profusamente difundidos pelo ministério da educação há anos e anos, e fazer copy-paste.

Reparem também que, segundo o autor, uma garantia de que o programa é cumprido é... o cumprimento do programa.

Tão cómico e tão triste como a vida



Se não viram e querem ir ao cinema, vão ver. Não lamentarão as duas horas gastas. Isto dito por quem tem falta de tempo não é elogio pequeno. (Claro que a mediocridade habitual do cartaz de cinema em Lisboa transforma filmes como este em obras primas.)

Professor assassinado por ensinar raparigas

Há dois dias, um comando taliban assassinou um professor na entrada da escola, frente aos alunos. O professor já tinha sido avisado de que deveria deixar de permitir a presença de alunas: os taliban entendem que educar mulheres contraria os princípios da sua religião.

É de presumir que este professor não seja um caso isolado: certamente muitos afegãos têm vontade e ânimo para resistir à imposição da barbaridade. Que pensarão estas pessoas, que não gostariam de regressar à idade de trevas do passado recente, das luminárias que no ocidente reclamam o fim do envio de tropas para o Afganistão?

quinta-feira, dezembro 15

Agradecimentos

Há dois dias houve por aqui um movimento anormal de entradas, motivado por uma recomendação de O Insurgente. Fica aqui o meu reconhecimento. E aproveito para agradecer também à Grande Loja do Queijo Limiano , ao Número Primo e ao Ávido referências feitas já há algum tempo. (Links ao lado.)

quarta-feira, dezembro 14

Eduquices

O artigo de Henrique Monteiro, publicado no último Expresso, sobre as concepções, a respeito do ensino da Matemática, de um dos nossos mais activos "especialistas em educação", é mais um de uma série longa em que se clama, sem que ninguém ouça, que o rei vai nu. O Público também incluiu, na passada segunda feira, uma opinião de Guilherme Valente no mesmo sentido. Eu envolvi-me nesta campanha, tendo escrito artigos críticos da situação a que se tinha chegado, em 1996 e em 1999. Visava questões muito concretas relacionadas com o ensino da Matemática. Os efeitos práticos destas intervenções parecem-me agora desprezáveis ou nulos, embora considere útil que a denúncia continue. A erosão do "eduquês" e das suas "teorias" tem sido lentíssima; de vez em quando aparece alguém que aparenta ter a vontade e o poder de inflectir caminho (primeiro Justino, e depois, em instantes fugazes, Maria de Lurdes) mas logo se descobre que o monstro é muito mais resistente, ou as vontades são mais fracas, do que se pensa.

O problema com a ideologia que os pedagogos pós-modernos infiltrados no ministério da educação e em pontos-chave do sistema escolar têm vindo a consolidar com fortes raizes, é que se trata de uma cantilena de embalar a que se adere sem necessidade de muito esforço nem espírito crítico. Desvia a necessidade do esforço intelectual para a rotina burocrática. Tenta suavizar o trabalho intelectual dos alunos, mas também dos professores (embora a estes crie uma infinidade de afazeres entediantes).

Um dos sintomas da narcotização produzida é o uso do jargão que estes pedagogos adoptaram como se fosse linguagem de gente. Enquanto as pessoas, para falar do ensino, se exprimirem usando o palavrão ensino/aprendizagem sem desatarem a rir, não há esperança de que as coisas verdadeiramente mudem.

terça-feira, dezembro 13

Protestos selectivos

Está no ar uma agitação enorme a propósito da tortura que os EEUU terão praticado sobre prisioneiros suspeitos de terrorismo e sobre os voos de aviões da CIA pela Europa. É uma vaga de excitação que sucede aos protestos recorrentes sobre as condições a que são submetidos os prisioneiros de Guantanamo. Em abstracto, o objecto destas preocupações é justo, mas a atitude enviesada da maioria das vozes que os proferem faz suspeitar de que a preocupação não tem nada a ver com direitos humanos, mas tem unicamente como fim atacar os EEUU e a actual admnistração.

Alguém se lembra, por exemplo, do nome de Akbar Ganji? É um jornalista iraniano preso há seis anos, torturado, e incomunicável, por delito de opinião. Fez greve da fome e encontra-se em débil estado de saúde. O advogado que pretendeu defendê-lo foi preso. Alguns amigos tê-lo-ão aconselhado a fazer declarações anti-bush para se tornar conhecido através dos media. Ganji tem recusado sistematicamente e o resultado está à vista. (Recorde-se que Shirin Ebadi, a advogada iraniana agraciada com o Nobel, cedeu a essa tentação, tendo no discurso de aceitação referido a situação de Guantanamo e calado a dos milhares de prisioneiros de consciência do seu país...)

Recentemente, a Foreign Press Association atribuiu a Ganji o prémio "Diálogo de Culturas 2005". Na cerimónia, a apresentação do prémio foi feita por Bianca Jagger, embaixatriz UNICEF, que afirmou que também não poderíamos esquecer Guantanamo e Abu Ghraib. Na visão distorcida dos novos iluminados, membros de bandos terroristas estão no mesmo plano dos que apenas pensam diferente e defendem as suas ideias escrevendo. Para já não falar, claro, da qualidade das ideologias de uns e outros.

domingo, dezembro 11

Até quando teremos liberdade de expressão?

O cineasta Theo van Gogh assassinado em 2004; Oriana Fallaci julgada em Itália por ofensas ao Islão; museus europeus que retiram de exibição obras eventualmente ofensivas (para o Islão, claro); nova legislação na Noruega e no Reino Unido para punir ofensas à religião... Tudo isto são sinais de que o mundo onde todos os pontos de vista têm direito à expressão está seriamente ameaçado. Ainda assim, há também sinais de resistência: artistas e editores do Jyllands Posten, na Dinamarca, não cederam às ameaças de morte e levaram por diante a publicação de cartoons relativos a Maomé e o Islão; Hervé Loichemol encena no Teatro de Carouge (Suiça) uma peça de Voltaire sobre Maomé, mas necessita de protecção policial. Os perigos que estes profissionais afrontam são bem reais. Eles demonstram uma coragem digna de admiração, tanto mais quanto ela está a tornar-se rara nas elites intelectuais e políticas, frequentemente envergonhadas e carregando complexos de culpa do próprio passado, mas prontas a ceder perante uma onda de retrocesso civilizacional.

Apesar da clareza com que a natureza da ameaça é discernível, para a ideologia dominante os perigos vêm sempre de outro lado. O discurso anticapitalista, reduzido a fórmulas simplificadas e tornado parte integrante da cultura de massas, anestesiou-nos colectivamente e impede a visão serena da realidade. (Só assim se explica, por exemplo, a atenção dada entre nós, recentemente, à questão dos crucifixos.)

sábado, dezembro 10

Riscando do mapa

Mahmoud Ahmadinejad veio declarar agora que se contenta com deslocar Israel para a Europa. Talvez porque se tenha apercebido de que, ao pretender apagar Israel do mapa, corre o risco de ver a prestigiosa ONU a antecipar-se-lhe. Em conferência de 29 de Novembro, de solidariedade com o povo palestiniano, a ONU exibiu publicamente um mapa onde o referido país (por acaso membro da ONU) não consta.

sexta-feira, dezembro 9

Ideias para uma novela sobre o amor nos tempos de informática (patrocínio: plano tecnológico)

A era da informática veio criar um problema adicional a quem sofre uma ruptura amorosa. Além dos objectos, lugares, músicas e mil e uma coisas que com toda a sua inocência se intrometem como um punhal em ferida aberta, despertando recordações tornadas insuportáveis, o amante rejeitado é confrontado brutalmente com um ou dois passwords, que tem de utilizar várias vezes ao dia, construídos com elementos inspirados na pessoa que perdeu. São bocadinhos de nome, são números que evocam datas, que de repente adquirem um poder agressor traumático. É preciso então mudá-los, desembaraçar-se deles, e nalguns casos não é fácil.

Proust analisou com minúcia infinita o sofrimento do amante abandonado em "Albertine disparue". É claro que não podia prever o trauma da password. Como não podia também prever que o próprio acto da traição amorosa poderia adquirir novos contornos de malvadez. Antigamente uma pessoa comprometida encontrava outra, apaixonava-se irremediavelmente e pronto, paciência, não havia nada a fazer senão romper o compromisso existente. Hoje a traição pode ser preparada no conforto de casa ou do escritório, através do email, dos sites de encontros ou de chat. Não se arrisca nada: se não resultar continua-se como está, se der certo logo se vê e o outro que se lixe. A traição não resulta agora do coup de foudre, mas de uma operação paciente, metódica e calculista, que pode demorar meses ou anos até à consumação, e a vítima é a última a saber. À atenção das escolas de escrita criativa e de Gabriel Garcia Márquez.

domingo, dezembro 4

Anything goes

Steven Guilbeault, director do Greenpeace movement no Quebec:

"Há dez anos pensávamos que tínhamos muito tempo, há cinco anos pensávamos que tínhamos muito tempo, mas a ciência diz-nos agora que já não temos muito tempo.

Aquecimento global pode querer dizer mais frio, pode querer dizer mais seco, pode querer dizer mais húmido, é a situação que temos."


Por este caminho, o aquecimento global arrisca-se a ultrapassar (injustamente) Bush na categoria dos bodes expiatórios de serviço.